domingo, 24 de abril de 2016

Shakespeare e o impeachment (por Gustavo Franco)

Shakespeare e o impeachment
Gustavo Franco
O Globo, 24 de abril de 2016

As semelhanças entre a obra do dramaturgo e a crise política


Por todo o mundo, registram-se comemorações pelos 400 anos da morte de William Shakespeare, completados ontem, 23 de abril, e não pode haver outro tema nesses eventos que a atualidade dessa obra, uma espécie de “escritura secular”, particularmente completa quando se trata de intrigas, maquinações, virtudes e desatinos dos homens públicos.

Nesta empolgação, diz-se que os enredos políticos do noticiário não passam de variações empobrecidas sobre um vernáculo catalogado há séculos. Será mesmo? Vamos, então, a um teste bem difícil: o que há sobre impeachment nas 38 peças de Shakespeare?

Pois bem, há uma peça que Antonio Cândido designou como a “tragédia do destronamento”, e que parece feita para nós. “Ricardo II”, escrita em 1595, oferece um retrato inacreditavelmente fiel da nossa crise e da ruína da presidência Dilma Rousseff, acredite se quiser.

“Ricardo II” foi a primeira de uma série de quatro peças históricas em sequência que cobriam o reinado do verdadeiro Ricardo II até o de Henrique V (1377 até 1422). Shakespeare escrevia dois séculos depois, numa época difícil, face às tensões em torno da rainha Elizabeth I, sempre muito questionada, e às voltas com conspirações. O regime era absolutista e seu fundamento era o Direito Divino, sob o qual não cabia nenhum questionamento sobre as ações do rei, ainda que manifestamente idiota ou mesmo quando violavam a lei. Quem haveria de julgar um rei ungido por Deus?

A tragédia de Ricardo II começa com um escândalo, não em uma empresa de petróleo, mas um assassinato, e uma controvérsia sobre os culpados. Logo ficamos sabendo que o próprio rei foi o mandante, e a discussão se dava entre dois nobres: o assassino de fato e o primo do rei, de nome Henrique de Bolingbroke, um sucessor natural do rei.

A gestão política desta crise foi uma coleção de erros e vacilações, quase um almanaque sobre o que não deve fazer um rei nessas situações, conforme o figurino de Maquiavel, cuja obra Shakespeare havia acabado de conhecer e abraçar.

O rei primeiro determinou que a controvérsia se resolvesse num duelo, mas depois mudou de ideia e determinou o banimento dos dois, sendo que Bolingbroke apenas por seis anos. O mundo político ficou sobressaltado com esta solução. Instaurou-se a incerteza. Sabia-se que o rei havia violado a lei, e ordenado o assassinato.

Tudo é muito fácil, do ponto de vista dramático, quando o rei é acintosamente maligno, como Macbeth, Ricardo III, Claudio e tanto outros extraordinários vilões da galeria shakespeariana. O problema aqui era que Ricardo II era “um homem honrado”, no exato sentido em que esta linguagem foi utilizada por Marco Antonio, para se referir a Brutus, em seu elogio fúnebre a Júlio Cesar, do que resultou atiçar o povo contra os conspiradores. Foi com essas mesmas palavras que FHC se referiu a Dilma Rousseff, no exterior, quando perguntado sobre ela.

Como se dá o destronamento de um “homem honrado” como Ricardo, culpado de assassinato, mas que apenas se expressa em poesia?

Os críticos identificam três eixos para o fenômeno que se designa como “perda de realeza” pelo qual, no universo de Shakespeare, e nessa peça em particular, o homem se separa da função e o rei se autodestrói.

Em primeiro lugar, o rei era um esbanjador irresponsável e havia levado a Inglaterra à bancarrota com guerras caras e tolas, e com impostos excessivos. Numa cena que se tornou clássica, os jardineiros do palácio são os que melhor definem as "pedaladas" reais, comparando a Inglaterra a um jardim malcuidado, repleto de excessos e ervas daninhas.

Em segundo lugar, há uma impressionante sucessão de pequenos ridículos, imaturidades e hesitações do rei, todas revelando um temperamento muito difícil, não explosivo e com dificuldades com o idioma, como Dilma, mas evasivo, ausente, lírico, excessivamente auto referenciado. O rei só ouve bajuladores, vive isento das exigências da realidade, aprisionado em sua própria poesia, “incapaz de distinguir a manipulação de coisas e palavras”, como explica Harold Bloom.

E, para culminar, o rei perpetra um outro desrespeito à lei, considerado mais petulante e inaceitável que o escândalo que inicia o drama: o rei determina o confisco das terras e bens da família de Bolingbroke. A interpretação do mundo político foi a de que o rei estava subvertendo a ordem, pois estava atacando as mesmas leis que estabeleciam o seu direito ao trono.

O drama se sucede de forma linear a partir desses três eixos, e Ricardo parece sucumbir sozinho à realidade de sua inadequação à posição de rei, mas estranhamente seduzido pela ideia que seu Direito Divino estava sendo golpeado e que um exército de anjos ia descer dos céus para salvar sua coroa. Barbara Heliodora o descreve como “um egocêntrico incapaz de se concentrar objetivamente nos problemas que lhe são apresentados” e enxerga uma “alta dose de prazer masoquista” no “gozo que o personagem sente em se ver no papel de vítima”.

Enquanto o rei ia murchando, Bolingbroke apenas insiste que lhe sejam devolvidas as terras confiscadas, o que Ricardo interpreta como “golpe”. Os nobres reconhecem a legitimidade do pleito de Bolingbroke, pois queriam evitar a insegurança jurídica, e, habilmente, Bolingbroke não revela sua pretensão ao trono. Emerge muita clara a tensão da época entre o governante ungido e flagrantemente inepto e o pretendente bem preparado, porém, tecnicamente, usurpador.

Bolingbroke não avança sobre o trono, ou se o faz é com imenso comedimento, apenas comparável ao estranho conforto que o rei encontra em dramatizar o seu próprio fracasso. Barbara Heliodora observa que Henrique de Bolingbroke “chega ao trono sem que Shakespeare lhe dê um só monólogo”. Esse personagem é apenas ação, embora tudo lhe venha por gravidade.

O destronamento se torna praticamente uma renúncia, e o rei nem mesmo se opõe a uma cerimônia de abdicação que fazia a transição um ato voluntário. O rei cresce como personagem, e como poeta, embora de forma inútil e centrada unicamente nas indignidades que diz sofrer. Quanto mais lírico, mais clara sua inaptidão para o cargo, ainda mais diante de seu sucessor, um político profissional. Bolingbroke se torna Henrique IV, manda matar Ricardo, e promete uma Cruzada na Terra Santa para expiar o delito, promessa jamais cumprida.

Qual a lição?

Ricardo morreu afirmando que foi golpe, estranhamente confortado com esta versão de seu fracasso. No conceito absolutista, não há dúvida de que Bolingbroke era usurpador, mesmo contando com apoio de todos. O poder não emanava do povo nesses tempos.

Hoje não temos mais um rei, mas três poderes, tudo diferente, exceto pelo fato de que Dilma Rousseff reedita Ricardo II de tantas maneiras que sua agonia parece ainda mais falsificada e infinitamente mais tosca.



Fonte http://oglobo.globo.com/economia/shakespeare-o-impeachment-19153689


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sexta-feira, 22 de abril de 2016

O mundo inteiro está cheio de todo mundo (Por: Felipe Moura Brasil)


O mundo inteiro está cheio de todo mundo
Por: Felipe Moura Brasil  31/01/2014

A pedidos de uma leitora e também porque o mencionarei mais uma vez no próximo post, trago para este blog na VEJA meu artigo de 11 de julho de 2013 sobre o ódio brasileiro à inteligência, o culto à ignorância, a incultura dos nossos especialistas e a cultura do coitadismo, em contraste com a história inspiradora do dr. Ben Carson.




1.
Dois irmãos negros comem pipoca assistindo à televisão. A mãe chega, atravessa a sala e desliga o aparelho. Eles protestam.

MÃE: Vocês assistem demais à TV.
FILHO 1: Não tanto assim.
FILHO 2: Não mais do que todo mundo.
MÃE: Não se preocupe com todo mundo. O mundo inteiro está cheio de todo mundo.

Para desespero dos filhos, ela diz que, de agora em diante, eles terão de escolher dois programas por semana e só poderão vê-los depois de terminar o dever de casa, sendo que, no tempo livre, terão de ir à biblioteca escolher dois livros e entregar a ela, no fim de cada semana, relatórios escritos sobre ambos.

O desespero dos filhos aumenta e a mãe se sai com mais um discurso memorável:
— Por que vocês perdem tanto tempo assistindo à TV? Se vocês usassem esse tempo para desenvolver os talentos que Deus lhes deu, não demoraria muito tempo para que as pessoas assistissem a vocês na TV.

2.
A cena acima é de “Mãos talentosas” (“Gifted hands”), o filme — disponível dublado ou com legendas em espanhol no Youtube — sobre a história real do dr. Benjamin Carson, o filho 1 interpretado, quando adulto, por Cuba Gooding Jr.. Assista. O dr. Ben Carson, como é chamado nos EUA, veio de uma família negra e pobre, era o pior aluno da turma no ensino fundamental e sofria gozações dos colegas por sua suposta burrice. Hoje é o melhor neurocirurgião pediátrico do mundo, o primeiro médico a separar com sucesso gêmeos siameses unidos pela cabeça.

Em uma de suas muitas aparições reais na TV, multiplicadas principalmente após ter tido a coragem de propor uma alternativa aos princípios do governo Obama em um discurso [legendado aqui e no fim do post] contra o patrulhamento “politicamente correto” dado a dois passos do presidente — para o desespero de seus assessores e também da mídia esquerdista, incumbida por natureza de abafar o carisma de qualquer negro que venceu na vida por seus próprios méritos e se opõe ao coitadismo racial —, ele lembrou a frase da mãe, Sonya, sobre um dia ser visto exatamente ali e disse sorrindo [aos 7 minutos] como quem cumpre a profecia no ato: “Hi, everybody.”

3.
Sonya Carson, diria eu, foi para Benjamin uma Dostoiévski analfabeta. Em carta a Mlle. Gerassímova de março de 1877, o escritor russo recomendava que ela adiasse a entrada na Escola Normal de Medicina Para Mulheres para se ocupar primeiro de sua educação geral, sem a qual acabaria se juntando àqueles que só fazem mal à própria profissão: “É que simplesmente a maioria de nossos especialistas são pessoas de educação chocantemente precária. Em outras terras é bastante diferente: lá encontramos um Humboldt ou um Claude Bernard, pessoas com grandes ideias, grande cultura e conhecimento para além de seu campo de atuação. Mas, entre nós, mesmo pessoas de talento são incrivelmente pouco educadas.”

Com uma autoridade materna cada vez mais rara nesses tempos em que os pais acreditam educar os filhos à base do “vamos combinar”, a sra. Carson, ao mesmo tempo que salvou Benjamin da palermice absoluta e da zombaria dos colegas, também antecipou boa parte da educação geral do futuro médico, evitando que ele se tornasse um especialista inculto como os da Rússia do fim do século XIX descritos por Dostoiévski, ou também presunçoso, como os do Brasil do início do século XX satirizados por Lima Barreto — sempre atualíssimo.

No conto “Harakashy e as escolas de Java” (lê-se: do Brasil), o escritor mulato explicava que os nossos sábios eram aqueles que fugiam dos laboratórios e dos livros: “Basta que um sujeito tenha aprendido um pouco de álgebra ou folheado um compêndio de anatomia, para se julgar cientista e se encher de um profundo desdém por toda a gente, sobretudo pelos literatos ou poetas. Contudo todos desse gênero querem sê-lo e, em geral, são péssimos.” A mentalidade geral brasileira, tão bem descrita por Lima Barreto, como já apontou Olavo de Carvalho, segue a das vizinhas fofoqueiras diante da biblioteca do major Quaresma: “Para quê tanto livro, se não é nem bacharel?” “Que, em contrapartida”, diria o filósofo, “faltem livros nas estantes dos bacharéis e doutores, onde abundam garrafas de uísque e fotos de viagens internacionais, é coisa que não ofende nem choca a alma nacional.”

[Meu trecho favorito daquele conto, no entanto, é mesmo sobre a nossa medicina: “O tratamento geralmente empregado é o do vestuário médico. Consiste ele em usar o doutor certo traje para curar certa moléstia. Para sarar bexigas, o médico vai em ceroulas; para congestão de fígado, sobrecasaca e cartola; para tuberculose, tanga e chapéu de palha de coco; antraz, de casaca, etc., etc.”]

Uma prova aliás de que a literatura barretiana continua atualíssima, em sua sátira do ódio à inteligência neuroticamente compensado pelo culto devoto a títulos, honrarias e demais aparências, é o artigo recente de Fernando Reinach, “Darwin e a prática da ‘Salami Science’”, no qual o autor lamenta que o objetivo da ciência nacional seja agora publicar artigos fatiados como salame no maior número possível de revistas especializadas: “No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. (…) Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu… Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). (…) Hoje, nas melhores universidades do Brasil, (…) a maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano — e onde.”

A “descoberta” do dr. Carson talvez não possa ser, analogamente, resumida em uma ou duas palavras, mas creio que as doze que utilizei lá em cima para apresentá-lo — “o primeiro médico a separar com sucesso gêmeos siameses unidos pela cabeça” — dizem alguma coisa sobre o seu rigor intelectual e o grupo em que ele está.

Se nem sequer a literatura de Lima Barreto escapou de certo vitimismo, não necessariamente o de raça, mas aquele “no qual as personagens às vezes até conseguem captar a medida de responsabilidade que tiveram em seus destinos, mas sem jamais lograr verdadeiras mudanças”, como escreveu o crítico literário Rodrigo Gurgel, a mãe do neurocirurgião pediátrico jamais permitiu que ele seguisse nesse caminho, à medida que desenvolveu no filho o hábito e até a obrigação moral de encontrar a solução para os seus próprios problemas, sem descontá-lo em mais ninguém, nem exigir compensações descabidas; o que, somado não apenas ao conhecimento adquirido, mas à imaginação e à criatividade desenvolvidas pela leitura, bem como ao senso cristão de responsabilidade pessoal, impulsiona qualquer cérebro ao menos na direção das grandes mudanças e realizações.

Hoje, ninguém precisa desenvolver os talentos que Deus lhe deu para aparecer na TV, principalmente a brasileira; e se o talento do sujeito ainda for intelectual, a TV será mesmo o último lugar onde ele vai aparecer, o que, no fim das contas, é apenas mais um motivo para desligá-la. A TV brasileira é a mãe marxista que manda até seus filhos burgueses irem às ruas exigir tudo do Estado, menos uma biblioteca não marxista para a qual mandá-los, a fim de que não sejam tão incultos e presunçosos.

O tamanho da falta que uma figura como o dr. Ben Carson faz no ambiente cultural brasileiro — e uma mãe como a sua nas famílias pobres e ricas do país — é tão imenso e imensurável que nada mais me resta senão expor o seu exemplo, bem como algumas daquelas suas opiniões que, vindo de quem vem e da maneira simples, respeitosa e inspiradora com que pregam uma mudança de atitude das pessoas em relação à vida, estimulando a confiança em seus potenciais, ao invés da “esperança” de que alguém as trate como coitadinhas, causam um verdadeiro curto-circuito na esquerda americana, que não pode simplesmente demonizá-lo como racista ou elitista sem cair no ridículo ululante.

Como disse o radialista Rush Limbaugh: “O dr. Carson tem uma história de sucesso vindo do nada, que o Partido Democrata diz não ser possível nos EUA. Essa história os amedronta porque se impõe como contraste gritante à mensagem deles não só aos afroamericanos, mas a todas as pessoas. O Partido Democrata não quer que as pessoas pensem que se tornar Ben Carson é possível nos EUA. É injusto demais. É imoral demais. Não há maneira alguma pela qual um sujeito negro poderia se tornar tão bom e tão poderoso; não por si só. Ele é uma ameaça a tudo isto.”

Uma ameaça a todo um modo de encarar as coisas que também se tornou natural aqui no país do fingimento eterno e da educação chocantemente precária.

Cientistas, médicos, empresários, professores, negros, gays, pobres, mulheres, universitários, índios, parece que ainda estão todos na mesma sala, comendo pipoca, assistindo à TV. O Brasil inteiro está cheio de todo mundo. E num país onde todo mundo se deixa rebaixar ao nível de todo mundo, todo mundo — por mais dinheiro que ganhe — acaba não sendo, nem ajudando ninguém.

Felipe Moura Brasil – http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil





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sábado, 16 de abril de 2016

A religião chamada ideologia: da Cruz e coroa à foice e o martelo (por Pedro Henrique)



Assim como a religião tradicional forjou extremistas, não poderíamos esperar menos da religião ideológica

Postado dia 13/04/2016 às 09:00 por Pedro Henrique

Foto: Reprodução/Internet
São inúmeros os autores contemporâneos que já constataram um problema corrente de nossa época, problema este que está engolindo mentes e almas: o fideísmo ideológico. Eric Voeglin, Mario Ferreira dos Santos, Michael Oakeshott, Roger Scruton entre outros filósofos que também já haviam falado sobre uma nova religião secular com base nas ideologias do século XX. Entretanto, quem melhor sintetizou isto foi Russell Kirk em seu livro: A política da prudência[1], onde Kirk compara as ideologias modernas com os grandes sistemas religiosos tradicionais. Todavia, há uma diferença basal entre elas: as religiões tradicionais (Budismo, Islamismo, Judaísmo e Cristianismo) têm o objetivo claro de preparar uma realidade pessoal em vista de um transcendente que há de chegar num plano pós-morte (escatológico). Fazendo uma analogia ao cristianismo, Cristo disse: “Meu reino não é deste mundo” (São João 18, 36); a ideologia inverte este grande paradigma, ela prepara grupos de fiéis discípulos para a insurreição política, não para buscar a liberdade espiritual numa realidade pós-morte, mas para caçar, por vias revolucionárias, os imediatismos ilusórios dos seus fins idealizados. Eles, os ideólogos e seus seguidores, ultrapassam quaisquer obstáculos éticos e morais para alcançar em seu grande plano político-utópico. Marx diria, em contraste a Cristo: “Meu reino é deste mundo, busque-o a qualquer preço”.
Assim como a religião tradicional forjou extremistas, não poderíamos esperar menos da religião ideológica. Para um estudioso social acostumado a opiniões filosóficas que exaltam o sadio debate e o sadio contestar argumentativo, deparar-se com tamanha cegueira moral e filosófica em que jazem alguns grupos na sociedade brasileira é uma verdadeira tormenta; a cegueira moral sempre foi prelúdio de totalitarismo em toda a história humana. Para estes a lógica não faz sentido, simplesmente porque a lógica contraria a cartilha de seu partido, e contrariar a cartilha partidária (o livro sagrado) já é um argumento mais que suficiente para inferirem falsidade a um fato.
As universidades foram incumbidas de serem o centro catequético e de recrutamento de cruzados para esta religião. Os professores pouco se importam em formar intelectos capazes de olhar os dois polos de um debate, capazes de expor uma crítica plausível, usar deste aparato democrático do: “contestar” para findar no sumo sensato do pensamento; talvez nunca ouviram falar daquela velha fórmula: tese > antítese = síntese. Hoje se não fores militantes não são dignos, simples assim. Me parece que não lembram que os grandes homens da nossa linhagem racional construíram a sociedade e delinearam a história humana com escritos, estudos, retóricas e grandes escolas de pensamento, não com gritos histéricos e nudismos sem porquês.
Nesta saudosa era dos extremos, permita-me divagar entre possíveis devires em tal época de irracionalidade política. Não é difícil imaginar que exista — e verdadeiramente não duvido que exista — um pedreiro crente que a construção de uma casa inicia-se pelo telhado; ao propô-lo uma outra via, uma via mais sensata baseada nos milhões de construções que iniciaram pelo alicerce, ele provavelmente lhe chamará de reacionário, conservador e fascista. Afinal, o que lhe impede de construir a casa pelo telhado senão as claras e intolerantes opiniões conservadoras e o reacionarismo histórico arquitetônico?
Histericamente diria ele: “por que não quebrar este tradicionalismo fútil de construir uma casa a partir do chão”? Gritaria, entre soluços raivosos: “não vai ter golpe”, mesmo que isto nada signifique no momento, mas ele ouviu em algum lugar e tão logo deduziu que devia ser algo inteligente para ser dito naquele distinto instante. Tudo isto por se propor a sensatez ao invés do fanatismo, por se propor a lucidez ao invés das irrefletidas opiniões militantes.
Acham que isto é loucura minha, que esta analogia é algo sem relevância factual? Ora, há pessoas que creem que o sítio de Atibia é de um “amigo” do Lula, creem que por amor a ele o seu “amigo” decorou a escadaria principal do hall de entrada com a foto do ex-presidente. Acreditam piamente que o “amigo” de Lula colocou os nomes de seus netos nos pedalinhos do sítio somente por camaradagem. A lógica não faz falta para alguns meus caros. Creiam, há coisas mais ilógicas sendo defendidas por grupos sociais do que o leve devaneio de se construir um edifício sem bases.
A grande verdade que salta perante os nossos olhos estupefatos é que a estupidez filosófica e o discurso ilógico tornaram-se algo a ser seguido e propagado; quando estas opiniões são contestadas elas ganham o belo e vazio slogan da “intolerância”. Slogan que eu aceito, afinal, nunca neguei flâmula de intolerante à burrice, principalmente a burrice assumida como sapiência.
Os debates vazios de argumentos e as defesas sem qualquer base na realidade são apenas alguns aspectos secundários destas ideologias plantadas em terrenos que flutuam em utopias teratológicas. “Antigamente” era preciso estudar, labutar dias em apenas um parágrafo da Crítica da razão pura, para finalmente poder dizer algo com certa propriedade sobre ela; era necessário engajar-se horas e mais horas mentalmente cansativas para opinar sobre política e todo seu desenrolar em mil matérias subsequentes. Hoje, entretanto, basta ler uma imagem bem construída no photoshop, postá-la no Facebook com supostas credenciais de verdade irrefutável, e pronto, eis seu doutorado sobre as mais altíssimas ideias, resumidas, é claro, em uma dúzia de caracteres.
A ideologia, por fim, ensina a repetir, ensina a estudar a partir de um estatuto promulgado que não deve ser contestado pelo bem do partido, partido, aliás, estatuto que sempre está com a razão — qualquer semelhança com os dogmas cristãos não são meras coincidências. Já diria o grande Chesterton: “Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas”[2]. Caso não acredite, vá num congresso feminista e erga um cartaz: “sou feminista, mas não socialista”. Depois venha aqui nos contar o que achou da amabilidade democrática daquelas distintas socialistas. Isto lembra-me muito o saudoso socialista Osvaldo Peralva, ele dizia ser a máquina comunista a maior e mais fétida máquina de doutrinação que existiu[3].
Possuímos milhares de homens defendendo o indefensável, lutando lutas perdidas, pisoteando a lógica mais basal para não correrem o risco de negar as sagradas palavras do de Marx e seus apóstolos.

Referência:

[1] KIRK, Russell. A política da prudência, 1ª Ed, É realizações: São Paulo, 2014
[2] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia, 1ª Ed. Ecclesiae: Campinas, 2013, p. 46
[3] PERALVA, Osvaldo. O retrato, 1ª Ed, São Paulo: Três Estrelas, 2015, p.257

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Fonte - http://sociedadepublica.com.br/religiao-chamada-ideologia-da-cruz-e-coroa-foice-e-o-martelo/




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quarta-feira, 6 de abril de 2016

José Nêumanne dá lição de moral no STF

José Nêumanne dá lição de moral no STF e no ministro Marco Aurélio Mello no Programa Roda Viva, da TV Cultura, que foi ao ar no último Domingo (03/04). 

"Sérgio Moro Condenou 67 réus e vocês enrolando"


STF, uma das maiores vergonhas desse pais, se todo cidadão e igual perante a lei, por que a existência de foro privilegiado, uma suprema corte que é indicada por políticos nunca vai contra quem os indicou, isto é um fato.


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sábado, 2 de abril de 2016

O que é o politicamente correto? (Por Orlando Braga)

Por Orlando Braga (2007)


Karl Marx
Muitos de nós fazemos uma idéia do que é o politicamente correto (PC), pela repetição de informações transmitidas pela mídia.
O PC não teve origem recente; remonta a sua utilização como instrumento ideológico, ao tempo da I Guerra Mundial. Quando Karl Marx escreveu o “Manifesto Comunista” (séc. 19), ficou bem claro que ideologia que nascia assentava em duas vertentes básicas: O Marxismo Econômico, que defende a idéia de que a História é determinada pela propriedade dos meios de produção, e o Marxismo Cultural, que defende a idéia de que a História é determinada pelo Poder através do qual, grupos sociais (para além das classes sociais) definidos pela raça, sexo, etc., assumem o poder sobre outros grupos. Até a I Guerra Mundial, o Marxismo Cultural não mereceu muita atenção, que se concentrou praticamente toda no Marxismo Econômico, que deu origem à revolução bolchevista (URSS).
O Marxismo Cultural é uma sub-ideologia do Marxismo (a “outra face da moeda” é o marxismo econômico), e como todas as ideologias, tende inexoravelmente para a implantação de uma ditadura, isto é, para o totalitarismo.
À semelhança do Marxismo Econômico, o Marxismo Cultural (ou Politicamente Correto) considera que os trabalhadores e os camponeses são, à partida, “bons”, e que a burguesia e os capitalistas são, a priori, “maus”. Dentro das classes sociais assim definidas, os marxistas culturais entendem que existem grupos sociais “bons” (como as mulheres feministas — porque as mulheres não-feministas são “más” ou “ignorantes”), os negros e os homossexuais – para além dos muçulmanos, dos animistas, dos índios, dos primatas superiores, etc.. Estes “grupos sociais” (que incluem os primatas superiores — chimpanzés, gorilas, etc.) são classificados pelos marxistas culturais como sendo “vítimas” e por isso, são considerados como “bons”, independentemente do que os seus membros façam ou deixem de fazer. Um crime de sangue perpetrado por um homossexual é visto como “uma atitude de revolta contra a sociedade opressora”; o mesmo crime perpetrado por um heterossexual de raça branca é classificado como um “ato hediondo de um opressor”. Segundo o Marxismo Cultural, o “macho branco” é o equivalente ideológico da “burguesia” no Marxismo Econômico.
Enquanto que o Marxismo Econômico baseia a sua ação no ato de expropriação (retirada de direitos à propriedade), o Marxismo Cultural (ou PC) expropria direitos de cidadania, isto é, retira direitos básicos a uns cidadãos para, alegadamente, dar direitos acrescidos e extraordinários a outros cidadãos, baseados na cor da pele, sexo ou aquilo a que chamam de “orientação sexual”. Nesta linha está a concessão de quotas de admissão, seja para o parlamento, seja no acesso a universidades ou outro tipo de instituições, independentemente de critérios de competência e de capacidade.
Enquanto que o método de análise utilizado pelo Marxismo Econômico é baseado no Das Kapital de Marx (economia coletivista marxista), o Marxismo Cultural utiliza o desconstrucionismo filosófico e epistemológico explanado por ideólogos marxistas como Jacques Derrida, que seguiu Martin Heidegger, que bebeu muita coisa em Friederich Nietzsche.
O Desconstrucionismo, em termos que toda a gente entenda, é um método através do qual se retira o significado de um texto para se colocar a seguir o sentido que se pretende para esse texto. Este método é aplicado não só em textos, mas também na retórica política e ideológica em geral. A desconstrução de um texto (ou de uma realidade histórica) permite que se elimine o seu significado, substituindo-o por aquilo que se pretende. Por exemplo, a análise desconstrucionista da Bíblia pode levar um marxista cultural a inferir que se trata de um livro dedicado à superioridade de uma raça e de um sexo sobre o outro sexo; ou a análise desconstrucionista das obras de Shakespeare, por parte de um marxista cultural, pode concluir que se tratam de obras misóginas que defendem a supressão da mulher; ou a análise politicamente correta dos Lusíadas de Luís Vaz de Camões, levaria à conclusão de que se trata de uma obra colonialista, supremacista, machista e imperialista. Para o marxista cultural, a análise histórica resume-se tão só à análise da relação de poder entre grupos sociais.
O Desconstrucionismo é a chave do politicamente correto (ou marxismo cultural), porque é através dele que surge o relativismo moral como teoria filosófica, que defende a supressão da hierarquia de valores, constituindo-se assim, a antítese da Ética civilizacional européia.


António Gramsci

Com a revolução marxista russa, as expectativas dos marxistas europeus atingiram um ponto alto. Esperava-se o mesmo tipo de revolução nos restantes países da Europa. À medida que o tempo passava, os teóricos marxistas verificaram que a expansão marxista não estava a ocorrer. Foi então que dois ideólogos marxistas se dedicaram ao estudo do fenômeno da falha da expansão do comunismo marxista: António Gramsci (Itália) e George Lukacs (Hungria).
Gramsci concluiu que os trabalhadores europeus nunca seriam servidos nos seus interesses de classe se não se libertassem da cultura européia – e particularmente da religião cristã. Para Gramsci, a razão do fracasso da expansão comunista marxista estava na cultura e na religião. O mesmo conclui Lukacs.
Em 1923, por iniciativa de um filho de um homem de negócios riquíssimo de nacionalidade alemã (Félix Veil), que disponibilizou rios de dinheiro para o efeito, criou-se um grupo permanente (“think tank”) de estudos marxistas na Universidade de Frankfurt. Foi aqui que se oficializou o nascimento do Politicamente Correto (Marxismo Cultural), conhecido como “Instituto de Pesquisas Sociais” ou simplesmente, Escola de Frankfurt – um núcleo de marxistas renegados e desalinhados com o marxismo-leninismo.

Max Horkheimer
Em 1930, passou a dirigir a Escola de Frankfurt um tal Max Horkheimer, outro marxista ideologicamente desalinhado com Moscou e com o partido comunista alemão. Horkheimer teve a idéia de se aproveitar das idéias de Freud, introduzindo-as na agenda ideológica da Escola de Frankfurt; Horkheimer coloca assim a tradicional estrutura socioeconômica marxista em segundo plano, e elege a estrutura cultural como instrumento privilegiado de luta política. E foi aqui que se consolidou o Politicamente Correto, tal como o conhecemos hoje, com pequenas variações de adaptação aos tempos que se seguiram. Surgiu a Teoria Crítica.
O que é a Teoria Crítica? As associações financiadas pelo nosso Estado e com o nosso dinheiro, em apoio ao ativismo gay, em apoio a organizações feministas camufladas de “proteção à mulher”, e por aí fora – tudo isso faz parte da Teoria Crítica do marxismo cultural, surgida da Escola de Frankfurt do tempo de Max Horkheimer. A Teoria Crítica faz o sincretismo entre Marx e Freud, tenta a síntese entre os dois (“a repressão de uma sociedade capitalista cria uma condição freudiana generalizada de repressão individual”, e coisas do gênero).
No fundo, o que faz a Teoria Crítica? Critica. Só. Faz críticas. Critica a cultura européia; critica a religião; critica o homem; critica tudo. Só não fazem auto-crítica (nem convém). Não se tratam de críticas construtivas; destroem tudo, criticam de forma a demolir tudo e todos.

Marcuse
Por essa altura, aderiram ao bando de Frankfurt dois senhores: Theodore Adorno e Herbert Marcuse. Este último emigrou para os Estados Unidos com o advento do nazismo.
Foi Marcuse que introduziu no Politicamente Correto (ou marxismo cultural) um elemento importante: a sexualidade. Foi Marcuse que criou a frase “Make Love, Not War”. Marcuse defendeu o futuro da Humanidade como sendo uma sociedade da “perversidade polimórfica”, na linha das profecias de Nietzsche.
Marcuse defendeu também, já nos anos trinta do século passado, que a masculinidade e a feminilidade não eram diferenças sexuais essenciais, mas derivados de diferentes funções e papéis sociais; segundo Marcuse, não existem diferenças sexuais, senão como “diferenças construídas”.
Marcuse criou o conceito de “tolerância repressiva” – tudo o que viesse da Direita tinha que ser intolerado e reprimido pela violência, e tudo o que viesse da Esquerda tinha que ser tolerado e apoiado pelo Estado. Marcuse é o pai do Politicamente Correto moderno.
O sucesso de expansão do Marxismo Cultural na opinião pública, em detrimento do Marxismo Econômico, deve-se três razões simples: a primeira é que as teorias econômicas marxistas são complicadas de entender pelo cidadão comum, enquanto que o tipo de dedução primária do raciocínio PC, aliado à fantasia de um mundo ideal e sem defeitos, é digno de se fazer entender pelo mentecapto mais empedernido. A segunda razão é porque o Politicamente Correto critica por criticar, pratica a crítica destrutiva até a exaustão – e sabemos que a adesão popular (da juventude, em particular) a este tipo de escrutínio crítico é enorme. A terceira razão é que o antropocentrismo do marxismo econômico falhou, como sistema social e econômico, em todo o mundo; resta ao Marxismo a guerrilha cultural.
O que se está a passar hoje na sociedade ocidental, não é muito diferente do que se passou na União Soviética e na China, num passado recente. Assistimos ao policiamento do pensamento, à censura das idéias, rumo a uma sociedade totalitária.





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