segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ladrões de cofres e de instituições - REINALDO AZEVEDO

REVISTA VEJA - segunda-feira, dezembro 24, 2012


Antes uma realidade quase intangível, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi parar na sala de estar dos brasileiros em 2012. No ano em que Carminha e Nina, da novela Avenida Brasil, embaralharam as noções corriqueiras de Bem e de Mal, os ministros se tomaram porta-vozes dos anseios de milhões de brasileiros justamente por terem sabido o que era o Bem e o que era o Mal. Cumpre notar que os juizes do STF não acharam o direito nas ruas, no alarido dos bares ou nos debates das redações. Decidiram segundo a Constituição, as leis e a jurisprudência da Corte. Personagens como José Dirceu, José Ge-noino e João Paulo Cunha se dizem vítimas de um tribunal de exceção e conclamam seus eventuais seguidores a julgar os juizes. Queriam ser tratados como sujeitos excepcionais. A questão é mais ampla do que se percebe à primeira vista.

A luta dos homens por igualdade perante a lei produziu tudo o que sabemos de bom e de útil nas sociedades; já o discurso da igualdade ao arrepio da lei só gerou morte e barbárie. Os atores políticos que tornam o mundo mais justo e tolerante anseiam por um horizonte institucional que universalize direitos para que emerjam as particularidades. Nas democracias, porque são iguais, os homens podem, então, ser diferentes. Nas ditaduras, em nome da igualdade, os poderosos esmagam as individualidades. Nas tiranias, porque são diferentes, os homens são, então, obrigados a ser iguais. Uma possibilidade acena para a pluralidade das sociedades liberais, e a outra, para os regimes de força, que encontraram no comunismo e no fascismo sua face mais definida.

O petismo no poder é fruto do regime democrático, sim, mas o poder no petismo é herdeiro intelectual do ódio à democracia e da crença de que um partido conduz e vigia a sociedade, não o contrário. Na legenda, não são poucos os convictos de que certos homens, em razão de sua ideologia, de seus compromissos ou de seus feitos, se situam acima das leis. Eis o substrato das acusações infundadas de que os ministros do STF desprezaram a jurisprudência da Corte para condená-los. Trata-se de uma mentira influente até mesmo entre aqueles que, de boa-fé, saúdam a “mudança” do tribunal.

Doses de ignorância específica e de má-fé se juntaram em pencas de textos sustentando, por exemplo, que, “sem o ato de ofício”, seria impossível punir um corrupto. Fato! O truque estava no que se entendia por isso. Os atos de ofício designam o conjunto de competências e atribuições de uma autoridade, com ou sem documento assinado. O Artigo 317 do Código Penal — uma lei de 1940 — assim define a corrupção passiva: “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Ora, como poderia assinar um documento quem ainda nem tomou posse? O voto de um congressista é um de seus atos de ofício. Se recebeu vantagens indevidas em razão dele, praticou corrupção passiva. Pouco importa se traiu até o corruptor.

A questão é igualmente vital quando se trata da corrupção ativa, um dos crimes pelos quais foi condenado José Dirceu, definida no Artigo 333 do Código Penal pela mesma lei de 1940: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Nos dois casos, se o ato for efetivamente praticado, o que se tem é a elevação da pena.

Dirceu e seus sequazes, no entanto, sustentam que inexistem provas e que ele está sendo condenado com base numa interpretação falaciosa da chamada “Teoria do Domínio do Fato”, que busca responsabilizar criminalmente o mandante, aquele que, embora no domínio do fato criminoso, não deixa rastro. É evidente que não pode ser aplicada sem provas. E não foi. Há não uma, mas muitas delas contra Dirceu. Parlamentares disseram em juízo que os acordos com Delúbio Soares tinham de ser referendados pelo então ministro; ficaram evidentes suas relações com os bancos BMG e Rural, como atestam depoimentos da banqueira Kátia Rabello; foi ele um dos articula-dores da reunião, em Lisboa, entre Marcos Valé-rio, um representante do PTB e dirigentes da Portugal Telecom etc. O Artigo 239 do Código de Processo Penal trata das provas indiciárias: “Considera-se indício a circunstância conhecida e proada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

Não é uma inovação para perseguir Dirceu. A lei é de 1941. Em uma de suas intervenções, o então ministro Ayres Britto esclareceu (no fim deste artigo, o endereço com a íntegra de sua intervenção):
“(...) os fatos referidos pelo Procurador-Geral da República (...) se encontram provados em suas linhas gerais. Eles aconteceram por modo entrelaçado com a maior parte dos réus, conforme atestam depoimentos, inquirições, cheques, laudos, vistorias, inspeções, e-mails, mandados de busca e apreensão, entre outros meios de prova. Prova direta, válida e robustamente produzida em Juízo, sob as garantias do contraditório e da ampla defesa. Prova indireta ou indiciária ou circunstancial, colhida em inquéritos policiais e processos administrativos, porém conectadas com as primeiras em sua materialidade e lógica elementar(...)”.

A última falácia dizia respeito à cassação dos mandatos dos deputados condenados com trânsito em julgado. Corria-se o risco, como se escandalizou o ministro Gilmar Mendes, de o Brasil ter um deputado encarcerado. Da combinação dos Artigos 15 e 55 da Constituição com o Artigo 92 do Código Penal, decidiu o STF que parlamentares condenados em última instância por crimes contra a administração pública estão automaticamente cassados. Inovação? Feitiçaria? Juízo excepcional? Não! Apenas a aplicação dos códigos que regem o país.

A gritaria que se seguiu à decisão chega a ser ridícula. Eis a redação do Artigo 92 do Código Penal, que cassa o mandato dos deputados men-saleiros, segundo autoriza a Constituição:
São também efeitos da condenação

I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.

É trecho da Lei n° 9268, de 1996, aprovada pela Câmara e pelo Senado. O Congresso, pois, já decidiu que deputados e senadores condenados em processos criminais, com trânsito em julgado, têm seus respectivos mandatos cassados, nas condições discriminadas acima. Para os crimes de pequeno potencial ofensivo, a palavra final é das duas Casas. O STF harmonizou os dispositivos constitucionais e deu eficácia à lei. Julgamento havido em 1995 tratava de caso muito distinto e, como se nota, se deu antes da lei de 1996.

Coube ao decano, Celso de Mello, o voto de desempate, alinhando-se com o relator e agora presidente da Casa, Joaquim Barbosa, que resistiu a todas as patrulhas e intimidações de 2007 a esta data: “Não se revela possível que, em plena vigência do estado democrático de direito, autoridades qualificadas pela alta posição institucional que ostentam na estrutura de poder dessa República possam descumprir pura e simplesmente uma decisão irrecorrível do STF”. O ministro estava dizendo, por outras palavras, que, nas democracias de direito, é a igualdade perante a lei que permite aos homens exercer as suas particularidades; é só nas tiranias que as particularidades de alguns igualam todos os outros na carência de direitos. Uma fala oportuna, no momento em que certos “intelectuais” de esquerda e deslumbrados do miolo mole resolveram defender uma variante dita “progressista” do “rouba, mas faz”, na suposição de que o desvio ético seria um preço a pagar pelo avanço social. É espantoso. É o “rouba porque faz”. Só há um jeito de isso ser considerado aceitável: além dos cofres, eles precisam ser bem-sucedidos em roubar também as instituições.

Em nome do povo — isto é, das leis —, o Supremo lhes disse “não”.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Entrevista para o Lente Azul em dezembro de 2012

O texto “IFBA em espera” que duas alunas, das turmas 1842 e 10811 respectivamente,  construíram foi publicado no Jornal “LENTE AZUL” Ano VIII, nº 02 de Dezembro/2012.

Parte do texto consta informações colhidas de nossa entrevista dada na tarde do dia 29 de novembro.

O texto, ainda sem finalizar, nos foi enviada por e-mail para tecer alguns comentários, e assim foi feito visando esclarecer o que foi dito por mim, evitando entendimentos equivocados.

Infelizmente o que saiu no citado jornal foi a primeira versão que contem algumas coisas que precisam de esclarecimento, daí a razão desta publicação.

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IFBA em espera.

                      






Laboratório de Mecânica
Com prédios datados de mais de 60 anos, o Instituto Federal da Bahia – Campus Salvador é formado por um conjunto arquitetônico antigo que, infelizmente, não consegue se adequar as necessidades da Comunidade que se apresenta cada vez mais insatisfeita com a estrutura – ou a falta dela – no colégio. Concomitante a isso, as obras iniciadas no instituto não têm tido prazo de término, a exemplo das salas de desenho arquitetônico do curso de Edificações, obra essa que já dura quase um ano, mas que o prazo de entrega era de apenas seis meses.

Segundo o Professor José Lamartine, Coordenador de Manutenção do Instituto, metade da demora para a realização das  obras deve-se ao fato que os prédios que abrigam os alunos do IFBa foram projetados para outra realidade. Não se pensava no aumento no contingente de alunos, na acessibilidade, no data-show e no ar-condicionado. Logo, o que se tem é uma dificuldade imensa para o início de todo e qualquer projeto de adaptação. Mas, e quando as obras são iniciadas por que se tornam tão difíceis concluí-las? Culpa-se entãoas licitações, pregões, ordens de serviço, empresas incapacitadas e uma burocracia que é, segundo o Professor, um mecanismo de controle, “um mal necessário” como o mesmo prefere dizer e assim cria-se um ciclo vicioso onde as obras começam e não terminam, onde os materiais são comprados e não chegam, onde subestações elétricas são os maiores obstáculos para a tão sonhada ampliação da Biblioteca.

Acontece que, o sistema licitatório se dá também com prioridades. Quais são então as prioridades da Instituição? Ar- condicionado, cafezinho e lanches no “céu” ou as necessidades básicas dos alunos? Em entrevista a um aluno do Instituto, José William, do 3° ano de Automação, o Lente quis saber se ele estivesse em uma fila de espera no IFBa qual serviço ele estaria esperando e automaticamente o estudante respondeu:”Ampliação do Refeitório Estudantil”. Atenuando assim a existência de mais um problema na infraestrutura do colégio, o refeitório. Mas, além disso, ainda se tem laboratórios em reforma, como o de Mecânica, inviabilizando o processo de aprendizagem dos alunos e a própria didática de alguns professores, como a aluna Marcelle Senna, do 1º ano de Mecânica apontou em resposta ao Lente. 

Sabe-se que toda obra que se inicia no Instituto demora para ser concluída, sabe-se que todo material comprado demora para ser instalado, mas não caberia então a Direção descobrir um meio para informar aos alunos sobre como são feitos esses processos? O por que de tanta demora? Enquanto essas medidas não são tomadas, cabe aos alunos esperar, afinal aqui tudo está em espera.

T.P. e A.M.

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Pronto, voltei...

Após a leitura do mesmo, confrontado com o conteúdo da gravação (disponível abaixo) trocamos os seguintes emails no domingo, dia 16 de dembro de 2012, com uma das autoras:

“Caras alunas
 Em primeiro lugar quero agradecer por ter atendido meu pedido, encaminhando-me antecipadamente seu artigo. Mostra uma preocupação em ser justa ao mesmo tempo que demonstra uma grande qualidade que é a humildade. Meus parabéns.
Então vamos ao que interessa... o conteúdo do texto tem algumas coisas que me trouxeram preocupação e, para isso estarei fazendo algumas comentários.
No que se refere as “salas de desenho arquitetônico do curso de Edificações” foi recentemente ocupado com pranchetas para as respectivas aulas.
Quando vocês dizem que é tão difícil concluir estas obras e nós culpamos as “licitações, pregões, ordens de serviço, empresas incapacitadas”, o contexto destas informações não está adequado. Além do mais existe uma categoria que não faz parte do conjunto inicial que é “empresas incapacitadas”. No contexto que fazei estas são barradas da nossa instituição através de mecanismos oficiais, desenvolvidos pelo governo federal. Neste sentido sim, a burocracia é “um mal necessário” que visa proteger a instituição pública e o erário.
Outro possível equívoco é a menção de que “subestações elétricas são os maiores obstáculos para a tão sonhada ampliação da Biblioteca”. Como pode ser esta afirmação uma verdade se considerarmos que o consumo de energia atual do IFBA-Salvador está em torno de 60% da capacidade instalada nas mesmas?
No tema “prioridades” o que vocês querem dizer com “lanches no “céu” ou as necessidades básicas dos alunos”? Que efeito querem provocar nos leitores?
Peço que fiquem muito atentas com a fidelidade do que conversamos uma vez que a integridade e a honestidade intelectual de um autor é seu maior patrimônio.
Mais uma vez obrigado por ter compartilhado.
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José Lamartine Neto”
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A resposta dada, foi:
“Professor, li os comentários e tentarei fazer algumas modificações para tentar "ser fiel ao que conversamos". Mas, o senhor pode me tirar uma dúvida?
Se o senhor mesmo me disse que algumas empresas selecionadas não são a que o Instituto deseja, como seriam essas estão totalmente qualificadas? Se não entendi a mensagem que o senhor quis passar, peço desculpas antecipadamente.
A. M.”
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Continuamos os esclarecimentos...

Querida A.,
 A seleção de empresas ocorre através de mecanismos muito rigorosos definidos pela Lei 8.666, conhecida como lei das licitações.
A Lei 8.666 abre a possibilidade de privilegiar pequenas empresas (PE) e medias empresas (ME) quando concorrem com as maiores, chamadas de Sociedades Anônimas (SA) ou Limitadas (Ltda.) e, como resultado, em situações de proximidade de preços a vantagem fica com as PE e ME.
As pequenas e médias empresas, segundo o governo federal, devem ser apoiadas por oferecer empregos a muitos brasileiros e se o governo não as defender, o "mercado" não o fará. Só que as grandes empresas têm saúde financeira para ir até o fim e cumprir o cronograma das obras, oferecendo os serviços por um preço maior já que têm uma maior infraestrutura, mais empregados, máquinas, instalações, escritórios, etc. Aí entram em desvantagem pela seleção de menor preço exigido pela lei.
Como somos obrigados a seguir a lei, ficamos impedidos de fazer de forma diferente.
 É isso. Qualquer coisa, pergunte.
 Abraço
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José Lamartine Neto
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Por fim a aluna A. conclui com...

“Professor, 
Vou encaminhar esse e-mail para T. e ver o que ela acha já que escrevemos juntas. Bom, acho que os pontos que o senhor apontou no texto devem ser mesmo revistos, mas dependendo do que vamos mudar teremos que mudar toda a estrutura do texto e infelizmente não temos tempo pra isso, pretendemos que o jornal saia antes do recesso das festas de final de ano, mas farei o possível com T. para mudarmos o que for preciso. Obrigada pela paciência.”
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Aí finalizou nossos e-mails.

A seguir tem a lista com alguns pontos da gravação (abaixo) que gostaria de destacar:

01'30" - histórico dos prédios
03'00" - acessibilidade, licitação,
05'11" - Histórico das instalações
07'14" - Instalações elétricas, subestação,
08'10" - Biblioteca
11'28" - bebedouros
12'30" - Quebra de bebedouros
12'55" - Porque é difícil consertar as coisas
13'30" - Instalação de novos bebedouros
14'21" - Compras para governo federal
15'24" - Vestiário feminino
16'22" - Quebra de matérias novos
17'55" - Educação
19'08" - O trabalho e a equipe de manutenção
20'00" - Gestão de manutenção
21'18" - Codificação dos espaços
22'13" - Parceria interna
23'25" - Laboratório vivo
24'35" - Por que as coisas demoram...
26'55" - Por que a burocracia...





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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A adúltera de Deus - Luiz Felipe Pondé

03/12/2012

O Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus também dispensou cuidados especiais para com elas, e para com as prostitutas, os ladrões e os desgraçados de todos os tipos. Deus parece não resistir à sinceridade do pecador, assim como a filosofia parece amar a verdade do melancólico.

Na Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de Jacó (depois chamado de Israel), por muitos anos uma mulher estéril e idólatra por raiva de Deus, enterrada fora do "cemitério da família" por ter sido uma vergonha para esta mesma família, será escolhida por Deus como consoladora do povo eleito no sofrimento.

Raquel é a "mater misericordiae" do judaísmo. Quando Israel sofre, é o nome dela que deve ser lembrado. Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?
Não se trata de brincadeiras teológicas "progressistas" que erram achando que ninguém é pecador. A pastoral de hoje, vide as igrejas que crescem por toda parte (o judaísmo não escapa tampouco desse vício), cada vez mais se assemelha a grandes workshops de autoajuda ou treinamentos motivacionais. Nada menos cristão do que um Jesus consultor de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só santo.

Mas aí reside o erro para com a teologia cristã mais sofisticada: nela, o grande pecador é o mais próximo do santo. A beleza da antropologia do cristianismo está neste sofisticado e denso vínculo dramatúrgico: quando o corpo se põe de joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue. Não se trata de dolorismo, mas, sim, da mais fina psicologia moral.

A santidade reside mais na alma do pecador do que na autoestima do "santinho".

Aliás, devo dizer que minha crítica à religião é diametralmente oposta àquela de tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso modo, critica a religião porque ela faz do homem um alienado covarde, e que se vende a Deus para ser um alienado feliz. Eu me alinho mais ao pensamento do teólogo Karl Barth (século 20), para quem a religião torna tudo um mistério maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso mesmo, amplia a consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso penso, e logo, existo.

Recuso as religiões institucionais não porque elas fazem do homem um medroso, alienando-o de sua felicidade e autonomia (como creem Epicuro e Marx), mas sim porque as religiões fazem do homem um feliz, alienando-o de sua própria agonia. Quando a religião vira marketing, é melhor caminhar só pelo vale das sombras.

Revi recentemente o maravilhoso "Fim de Caso" (filme de 1999, dirigido por Neil Jordan), com a deusa Julianne Moore e Ralph Fiennes. O filme é uma adaptação do romance de Graham Greene e narra a "sua conversão". Trata-se de um fino tratado de teologia, melhor do que grande parte dos livros que afirmam sê-lo.

No filme, a compreensão da íntima relação entre pecado e graça é avassaladora. Nada mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo: o santo não é um santinho.

A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que ao longo do filme apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar um milagre. A adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e no amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é aquela que mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No cristianismo, Deus leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele mesmo passar por ela, na figura da Paixão de Cristo.

Um musical a estrear, baseado na obra de Victor Hugo (século 19), "Os Miseráveis", com Hugh Jackman no papel de Jean Valjean, fugitivo da cadeia, e Russell Crowe no papel de seu perseguidor implacável Jabert, traz uma das maiores cenas da teologia cristã já representada na arte. Jean Valjean, após ter roubado os castiçais da casa de um padre, e ser pego pela polícia, é perdoado pelo padre que confirma para a polícia a mentira contada por Valjean: "Sim, eu dei os castiçais para ele".
Este ato transforma Valjean. O encontro entre a misericórdia e o pecador é uma das maiores afirmações do sentido da vida.

Luiz Felipe PondéLuiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/1194952-a-adultera-de-deus.shtml

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