terça-feira, 22 de janeiro de 2013

DOIS ENGENHEIROS, OITO MILHÕES de Ênio Padilha

DOIS ENGENHEIROS, OITO MILHÕES


Três coisas me aborrecem muito: Um, quando se faz apologia do sucesso de quem não estuda menosprezando ou descrevendo como tolo aquele que estudou; Dois, quando uma história sem pé nem cabeça é "vendida" como verdade absoluta só porque "deu na internet"; Três, quando engenheiros ou arquitetos são ridicularizados em público por alguém que nunca sentou num banco de faculdade de Engenharia ou de Arquitetura e, portanto, não sabe do que está falando.

Assim, este artigo tornou-se inevitável, por ter sido provocado por esses três componentes ao mesmo tempo...

É o seguinte: em alguns vídeos disponíveis na internet um certo palestrante conta uma historinha para ilustrar e confirmar a sua linha de argumentação.

O palestrante não é nenhum Zé Ninguém. É graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação. Professor-titular de uma importante Universidade Brasileira, membro do Conselho Técnico Científico de Educação Básica da CAPES/MEC. Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo e é autor de diversos livros.

Na história contada pelo palestrante, que, como ele faz questão de repetir, é "clássica e verdadeira" uma grande empresa multinacional (que fabricava, entre outras coisas, pasta de dentes) tinha, há 15 anos, um grande problema para ser resolvido: na esteira final de embalamento algumas caixinhas vinham vazias, sem o tubo de creme dental. Isso era um problema pois poderia causar dificuldades comerciais para a empresa.

O que fez a multinacional? Contratou dois engenheiros para resolver o problema. Os dois engenheiros trabalharam por três meses, consumindo oito milhões de reais e chegaram a uma solução "estupenda": um programa de computador, acoplado à esteira de aço com uma balança ultra sensível. Quando passava uma caixinha vazia o sistema acusava a diferença de peso, parava a máquina, travava tudo, um braço hidráulico vinha e tirava a caixa vazia.

Depois de dois, três meses de funcionamento perfeito, foram olhar os relatórios e descobriram que havia dois meses que o sistema estava desligado. Chamaram supervisor, gerente e chefe e ninguém sabia de nada. Chamaram os operários e alguém falou: "a gente desligou isso, porque dava um trabalho danado. Travava o tempo todo". Então, como é que está funcionando sem defeitos? "A gente resolveu do nosso jeito: fizemos uma vaquinha, juntamos oitenta reais e compramos um ventilador grande e colocamos na esteira. Quando passa uma caixinha vazia o vento carrega!"

Gargalhadas incontidas na platéia. Palestrante feliz! Conseguiu demonstrar o seu ponto de vista: a melhor solução está onde está o melhor estoque de conhecimento.
Bravo, Doutor!

E onde é que entra a Engenharia nesse seu exemplo? Ah, sim. O senhor está demonstranto que engenheiros são obtusos, idiotas, sem noção de custos e incapazes de encontrar uma solução minimamente razoável (Acho que é isso). Portanto, se estamos falando de "estoque de conhecimento" inútil procurar no departamento de Engenharia. (é isso?)

É claro que essa história tem toda cara de ter sido inventada para ilustrar palestras de autoajuda e motivação, tipo de evento em que o objetivo é muito mais divertir e distrair a platéia do que ensinar coisas realmente úteis para a vida. Mas me incomodou o fato de que esse vídeo está reproduzido diversas vezes na internet, sempre seguida de comentários contra a obtusidade dos engenheiros envolvidos.

Fiz uma pequena busca. Mandei um e-mail para o palestrante, outro para a única empresa multinacional que se encaixa na descrição feita pelo palestrante e também para a Associação de Engenheiros de Valinhos. Recebi algumas respostas e, voilá... descobri o óbvio: a história é fake. Foi inventada para ilustrar alguma conversa fiada e acabou, por falta de filtro científico, chegando à palestra de um acadêmico (que deveria, por dever de ofício, ter o cuidado com todo o conteúdo de suas apresentações).

Será que esse palestrante coloca nos seus livros qualquer bobagem que ouve numa mesa de bar ou numa festa em casa de amigos? Imagino que não. Então por que incluiu essa história na sua palestra? E por que deu a ela o crédito de "clássica e verdadeira"?

Resposta: porque ele sabe que, nesse tipo de platéia ninguém desconfia do que é dito. As pessoas estão ali para se divertir, dar boas risadas e se sentirem melhor com a própria mediocridade. Se eu não sou alguém capaz de construir soluções elaboradas, científicas e tecnologicamente corretas, tudo bem. Eu posso me sentir melhor ridicularizando pessoas que fazem isso. Nesse país de analfabetos sempre foi esporte nacional menosprezar e ridicularizar as pessoas que estudam e se preparam.

Nas novelas da tv os personagens principais nunca estudam. Alguém aí se lembra de algum personagem que tenha vencido na vida ou progredido, por ter estudado, durante uma novela? Nem em "Malhação" (cujo cenário é uma escola) os personagens estudam ou têm suas vidas transformadas em função da dedicação aos livros e cadernos.

Nas novelas é muito comum o progresso (muitas vezes vertiginoso) por outras razões como beleza, simpatia, jeitinhos ou contatos com as pessoas certas.
Isso alimenta nas pessoas (nos telespectadores) a crença de que o sucesso está ao alcance de qualquer um: estar melhor preparado para as oportunidades não faz diferença. É tudo uma questão de "força de vontade".

No futebol (nos esportes, em geral) essa lógica também é forte. Em outros países, um atleta que se preparou muito e por alguma razão perde a competição não é desprezado pela torcida. Ao contrário, recebe os aplausos e o reconhecimento pelo empenho e preparo. A torcida sabe que aquele atleta tem maior chance de construir uma carreira de bons resultados.

No Brasil não. O brasileiro supervaloriza as conquistas casuais, as vitórias inesperadas, o campeão que surpreendeu a todos, o atleta que vence uma grande competição quando ninguém esperava nada dele.

Torcemos sempre pelo time mais fraco e pelo competidor mais despreparado. São os atletas e equipes que, no imaginário coletivo, chegam às conquistas por acaso, sem querer, sem ter planejado isto.

Pais e mães se orgulham de contar para os amigos que "meu filho passou no vestibular. E olha que ele nunca estudava para a prova".

Uma pessoa conquista um bom emprego e conta pra todo mundo, cheio de orgulho: "nem me preparei para a entrevista!"

O brasileiro vive procurando provas de que é possível vencer na vida sem preparo, sem investimentos e, principalmente, sem passar pelo caminho completo.

Nós, brasileiros, não acreditamos no treinamento. Não acreditamos no estudo. Não acreditamos que o desempenho é o resultado de uma estrutura (física, intelectual ou psicológica) planejada.

Torcemos contra o atleta favorito (aquele que treinou mais e por mais tempo). Torcemos contra os mais fortes (que são mais preparados e estruturados). Torcemos sempre para que haja uma queima inesperada de etapas com a surpreendente vitória do novato, daquele que não estudou ou que não se preparou direito.

E a vida segue.


ÊNIO PADILHA
www.eniopadilha.com.br | ep@eniopadilha.com.br

2 comentários:

Dom Leal disse...

Sim professor Enio, temos que valorizar sim o preparo, valorizar bastante o investimento em educação e que conduza à valorização tecnológica. Precisamos de estudantes envolvidos em pesquisas, em manter o foco em encontrar respostas para nossas questões nacionais. Temos que encontrar este padrão em meio ao caos. Acertado seu comentário.

Dom Leal disse...

Sim professor Enio, temos que valorizar sim o preparo, valorizar bastante o investimento em educação, e que conduza à valorização tecnológica. Precisamos de estudantes envolvidos em pesquisas, em manter o foco em encontrar respostas para nossas questões nacionais. Temos que encontrar este padrão em meio ao caos. Acertado seu comentário.

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