sábado, 12 de maio de 2012

Jdanov está de volta - por Ipojuca Pontes

Ipojuca Pontes (*)
Fonte (**), originalmente publicado no ano de 2002.

"Atrevo-me a dizer que as ditaduras de esquerda são piores, pois contra as de direita pode-se lutar de peito aberto: quem o fizer contra as de esquerdas acaba acusado de reacionário, vendido, traidor".
Jorge Amado

No momento em que o país dá indícios claros de que vai ser controlado por partido político fundamentado na teoria e prática da ideologia marxista-leninista, e em que se faz constante, nas assembléias das associações corporativas, nos jornais e mídia em geral, o apelo, formulado por ideólogos de esquerda e artistas “engajados”, para que se institucionalizem “políticas públicas” voltadas para o fomento oficial de uma cultura comprometida com a “conscientização das massas” e a formação da “cidadania” e, mais ainda, em que se antevê, a partir de uma postura dita gramsciana, a “horizontalização da praxis cultural” e da manipulação programática de que "todos somos artistas" – é hora de considerar, sem grande margem de erro, que Jdanov, ou melhor, que o Jdanovismo está de volta com o objetivo claro de transformar o processo cultural num instrumento de luta de classes para consolidar no Brasil - a exemplo do que ocorreu na Rússia Soviética, China, Cuba e Coréia do Norte – o regime socialista.

Mas quem foi Jdanov e o que quer dizer Jdanovismo?



A indagação não teria sentido se fosse feita, por exemplo, a cineastas como Serguei Eisenstein ou Dziga Vertov, ou músicos como Prokofiev, Katchaturian, Shostakovitch e escritores do porte de Boris Pasternak, Maiakoviski, Isaac Babel, Bulgakov, Siniavskii, Solzhenitsyn e a poetisa Ana Akhmátova e, no plano internacional, personalidades como Marguerite Duras, Elio Vittorini, Elia Kazan, Raymond Aron, André Gide, Camus, Cabrera Infante, Haidée Santamaria, Octávio Paz, Armando Valladares ou Vargas Llosa e, em âmbito interno, gente como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Carlos Lacerda, José Lins do Rêgo, Sérgio Milliet, Luís Jardim ou Nelson Rodrigues - em grande parte expurgados ou banidos da atividade artística, outros levados à morte e à prisão, alguns ao suicídio, mas todos de algum modo considerados, no contexto oficial da política cultural comunista, como formalistas, cosmopolitas, reacionários, inimigos do povo, traidores da classe operária, burgueses, alienados, agentes do imperialismo, diversionistas ou simplesmente provocadores e entreguistas. Como as pessoas que atuam hoje no meio cultural certamente desconhecem a figura - mas não de todo fenômeno – e, cedo ou tarde, se transformarão em arautos ou vítimas de sua causa e ideologia, convém dar nome aos bois.

Andrei Aleksandrovich Jdanov (1896-1948), leitor de Lenin, membro do Comitê Central do Partido Comunista e homem de confiança de Stalin, foi o ideólogo da política cultural do regime soviético (ainda em voga entre partidos de esquerda, dentro ou fora do poder), além de mentor e porta-voz do ”realismo socialista”, a teoria (na realidade, doutrina oficial) que tinha (e tem) como princípio comprometer a criação artística – notadamente no cinema, teatro, literatura, música e pintura – com a “transformação ideológica e a educação dos trabalhadores para a formação do espírito socialista entre as massas”. Embora não medisse mais do que 1,60 de altura, foi considerado o 2º homem mais importante na hierarquia do Politburo, chegando ao auge do poder no final dos anos 40, quando tornou o Jdanovismo uma doutrina internacionalizante.

Já em 1934, ao abrir o 1º Congresso de Escritores da União Soviética, Jdanov, como porta-voz de Stalin, deu a entender que dali em diante a cultura seria usada, exclusivamente, como arma na luta pela implantação do socialismo. Foi quando estabeleceu as novas regras do jogo para orientação da conduta dos artistas e do financiamento dos órgãos oficiais no terreno das artes, que, de forma sucinta, deviam estar comprometidas com:

1) O entendimento de que a classe operária, e não a burguesia, é o "agente histórico universal";

2) O estabelecimento da ação cultural como instrumento de conscientização popular, fazendo prevalecer, no confronto da luta de classes, a visão da supremacia dos valores da classe trabalhadora;

3) A criação do "herói ingênuo", "herói positivo" e "herói negativo", este último um inimigo da formação da sociedade socialista, e que "devia ser odiado";

4) Banimento, nas manifestações artísticas, da ambigüidade, da ironia, do subjetivismo, das abstrações e do formalismo - considerados todos arcaísmos e vícios do comportamento burguês;

5) Exclusão de qualquer forma de entendimento "multilateral", pois o partido, por si só cabeça pensante e o Grande Intelectual, detém o controle da verdade.

(Um sexto item, de fato, estava implícito às regras de Jdanov, proclamado depois aos intelectuais por Fidel Castro, em Havana, 1971: "Dentro da Revolução Socialista, existe tudo; contra a Revolução Socialista, não existe nada").

No entanto foi em 22 de setembro de 1947, ao presidir por iniciativa de Stalin em Slarszka-Poreba, na Polônia, a conferência dos partidos comunistas da Europa - quando foi criado o Comitê de Informação dos Partidos Comunistas (Kominform) com o objetivo de fixar as linhas de ação e pensamento do comunismo internacional em face da Guerra Fria -, que Jdanov apresentou o célebre "Relatório de Setembro", pondo em evidência as novas bases teóricas a serem adotadas como Bíblia pelas células dos partidos comunistas em todo mundo.

O que diz o "Relatório de Setembro", documento stalinista que detona a Guerra Fria e justifica a expansão e o avanço estratégicos do comunismo Soviético no Leste da Europa e outras partes do mundo no pós-guerra? Ele sustenta, em síntese, o seguinte:

1) Os Estados Unidos, potência imperialista no campo ideológico, econômico e militar são, em toda parte, uma ameaça às "posições mundiais do socialismo";

2) Resulta desse estado de coisas, na prática, a polarização do mundo em dois blocos: o da União Soviética e suas democracias populares, "apoiadas pela forças populares e progressistas de qualquer lugar do mundo", e o norte-americano, reunindo "as forças reacionárias e antidemocráticas" - o primeiro procurando estabelecer "uma paz justa e duradoura", e o segundo tramando "uma nova grande guerra anti-soviética".

3) Diante deste quadro inequívoco, os partidos comunistas de todo o mundo, de acordo com as novas diretivas do Kominform (estabelecido no Kremlin), deviam deflagrar uma "contra-ofensiva sistemática ao imperialismo norte-americano e seus aliados", nos campos político, econômico, militar e sobretudo ideológico, com o objetivo precípuo de desestabilizar o bloco inimigo. Para tanto, seria obrigatória a mobilização de militantes, jornalistas, artistas, escritores, intelectuais e professores universitários para o combate, no terreno das idéias e da propaganda, dos agentes mais agressivos da difusão cultural imperialista: o cinema, imprensa, música, quadrinhos, literatura policial, etc - o lixo, em suma, da cultura de massa e seus modernismos. A palavra de ordem do Kremlin é, então, demonizar o mito da democracia e o american way life, a Coca-Cola, o Pato Donald, os chicletes, o jeans e a nudez das pin-up girls, deixando claro que os intelectuais anticomunistas e artistas do bloco opositor deviam ser destruídos ou levados ao ridículo como aliados do "monstro".

Em contraposição, para conquistar corações e mentes, o mundo Soviético na sua luta pela paz devia ser defendido e enfatizado como força positiva e caminho irreversível para a humanidade. No dizer de um membro do Partido Comunista Francês presente na conferência, Maurice Thorez, entusiasta do relatório, dali por diante só existia "uma atitude para o intelectual comunista: assumir inteiramente, sem reservas, as posições ideológicas e políticas da classe operária". Outro participante do encontro, Aleksandr Fadeev, que dirigia a União dos Escritores da URSS (e que, mais tarde, no período do "degelo" kruscheviano, meteu uma bala na cabeça), procurando demarcar o campo das artes como principal bastião do proselitismo ideológico, pontificou que "A cultura (...) se entrega de um modo consciente ao serviço do povo e do Estado Socialista e se propõe conscientemente à educação comunista do povo". O próprio Georg Lukács, filósofo e esteta marxista e um dos criadores da Escola de Frankfurt (comprometida com o bombardeio sistemático à “estrutura dominante" da sociedade industrial contemporânea” - os Estados Unidos), plenamente integrado no espírito Jdanovista, destacou mais tarde o que julgava ser inimigo fundamental: “o modernismo não só conduz à destruição das formas literárias tradicionais, como também leva à morte da literatura como tal”.

Ao formular a teoria dos "dois blocos", com o objetivo de intimar dirigentes e intelectuais comunistas de todo o mundo para a Guerra Fria ideológica a ser travada, Jdanov sabia que mentia de forma deslavada. Não que os dois blocos não estivessem já delineados e pronunciassem um conflito autoevidente: o próprio Churchill, ex-premier inglês, em discurso histórico, já antevia o antagonismo entre as duas forças, ao denunciar em 1946 que "Uma cortina de ferro avança e se abate sobre o Leste Europeu", invocando, paralelamente, uma necessária reação do mundo livre ao expansionismo soviético.

Jdanov mentia porque ele próprio era partidário fanático da violência (como "segundo" de Stalin, tinha sido entre 1936-38 um dos executores na URSS da política repressiva do Grande Terror e responsável direto pelo assassinato em massa de mais de 1 milhão e meio de pessoas, a maioria pertencente aos quadros do PCUS, entre eles centenas de artistas e intelectuais dissidentes) e, bem ao estilo soviético, no exato momento em que divulgava para platéia de aficionados o relatório que propugnava pela "paz justa e duradoura", tramava nos salões do Kremlin o Golpe de Praga (a tomada da Tchecoslováquia ocorreria no início de 1948), ajudava a deportar centenas de milhares de trabalhadores e camponeses para os inóspitos campos da Sibéria, anexava novos territórios na Ásia Central para implantação de fazendas coletivas destinadas ao trabalho escravo, priorizava dotação orçamentária para a confecção da Bomba Atômica (testada em setembro 1949), intensificando a corrida armamentista, enviava recursos para Mao Tsé-tung derrubar Chiang Kai-shek , na China, ao tempo em que, com mão de ferro, impunha o estreitamento (policialesco) da disciplina do "realismo socialista" no campo das artes, promovendo o expurgo e a prisão de artistas e intelectuais acusados de "desvio ideológico".

No Brasil o Jdanovismo foi adotado como artigo de fé pelos dirigentes do Partido Comunista, e levado às últimas conseqüências pelos seus intelectuais militantes. Apegados pelo umbigo aos ditames do "Relatório de Setembro", escritores, jornalistas, cineastas, pintores, músicos, dramaturgos e professores dos mais diversos ofícios partiram para a luta campal e sem tréguas contra as mazelas do "imperialismo ianque e seus lacaios". Jornais e revistas controlados pela orientação partidária (tais como Para Todos, Problemas, Tribuna Popular, Prisma, Fundamentos, Voz Operária, Hoje, Literatura, Imprensa Popular, Novos Rumos, etc., alguns com recursos provindos de Moscou), passaram a reproduzir a virulenta propaganda do PC soviético ou veicular o proselitismo ideológico dos quadros do PCB. Jorge Amado, por exemplo, para quem Stalin, o "Supremo Guia da Humanidade", ensinava a "beleza da luta e da vitória", traduzia as lições de Jdanov de modo claro: “A educação artística das grandes massas, em especial das massas proletárias, é um dos pontos do nosso programa de partido (...) Pensamos em teatro, em cinema, em editoras, em exposições, conferências, poemas realizados, pronunciados e declamados nas fábricas e nos grandes centros de concentração proletária”. Em tais espaços, seriam religiosamente sublinhados: a) o caráter pacifista da URSS, sempre identificado com o progresso humano, e b) a ameaça que representava para o mundo o imperialismo americano e sua decadente cultura burguesa.

Como não detinham no plano institucional o controle do aparato burocrático-cultural, e ainda não contavam (como hoje contam) com recursos financeiros que ultrapassam a casa de vários R$ bilhões, os militantes comunistas terminaram por assumir em âmbito interno a postura Jdanoviana de "Comissários do Povo", cuja conduta perfilava-se em promover, de um lado, o denuncismo contra "desvios", "traições" e "fugas" e, de outro, exaltar a "coerência" e o comportamento ideológico "conseqüente". Personalidades como Alex Viany (codinome de Almiro Fialho), Nelson Pereira dos Santos, Dalcídio Jurandir, Oswaldo Peralva, Rossine Camargo Guarnieri, Astro-gildo Pereira, Moacir Werneck de Castro e tantos outros tornaram-se ativos partícipes na luta ideológica "em prol do socialismo", quase sempre instrumentalizados no maniqueísmo, intolerância e xenofobia propostos pelo documento.

Hoje, em que pese o aparente término da Guerra Fria - com a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS -, o Relatório de Jdanov nunca esteve tão em moda quanto na atualidade, especialmente no Brasil e países da América Latina. Um simples exame das publicações e editorias das mídias, filmes, peças, exposições, festivais, seminários, etc., demonstra em quantidade e qualidade a objetiva supremacia da Agenda Jdanov, com seus compromissos com uma arte política e ideologicamente empenhada, compreendendo-se por isto o denuncismo do capitalismo enquanto modelo político-social e, sobretudo, a demonização dos Estados Unidos como pais agressor e belicista. Pouco importa saber que a Guerra Fria camuflava a fragilidade de um sistema totalitário que tinha de se manter fechado para não se desintegrar, e que, para isto, não media esforço para ampliar a tensão mundial e, internamente, erguer cortinas e muros sustentados pela mentira, pelo pânico e pelo genocídio.

No caso especifico da implantação do modelo ideológico marxista-leninista-gramsciano pautado por partido que chega ao poder pelo voto, a indagação pertinente é saber se a sociedade brasileira tem consciência do que isto significa e - mais ainda -, se os próprios atores do “processo cultural” em andamento têm em mente o risco que correm - aqui e agora - ao levantar cenários sobejamente percorridos em Cuba, China, Coréia do Norte e na própria ex URSS, todos vítimas e arautos de Jdanov e seu Jdanovismo.

(*) Ipojuca Pontes é cineasta e escritor.
(**) PONTES, Ipojuca. A Era Lula - Crônica de um desastre anunciado. São Paulo. A Girafa, 2006. p. 229-235

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