domingo, 17 de março de 2013
No exterior, problema resolvido - Quem fez reforma, fez; quem não fez perdeu o interesse
No exterior, problema resolvido
Quem fez reforma, fez;
quem não fez perdeu o interesse
"Foi então, pela primeira vez, promulgada a lei agrária, que, desde aquela época até hoje, nunca mais foi discutida sem provocar as mais violentas emoções", escreveu o historiador romano Tito Lívio, quase 2.000 anos atrás, sobre um episódio ainda mais antigo, a redistribuição de terras ordenada pelo tribuno Caio Graco um século antes. Se Tito Lívio, que morreu há 1.980 anos, soa tão atual é porque a reforma agrária nunca foi discutida sem provocar violentas emoções. Reforma agrária não é simples instrumento para dar terra aos sem-terra. Como desafia o direito de propriedade e chacoalha a estrutura de poder, carrega consigo o espírito de uma autêntica revolução social. Mais de quarenta países experimentaram projetos de redistribuição da posse da terra neste século - e nenhum deles permaneceu o mesmo depois disso.
Caio Graco pagou com a vida a ousadia de desapropriar os latifúndios patrícios. No final do século XVIII, a Revolução Francesa implodiu as relações de trabalho no campo, abolindo a servidão rural. Meio século depois, os Estados Unidos moldaram o destino do país ao distribuir de forma igualitária a terra pública. Apesar dessas marcantes experiências do passado, a reforma agrária, do jeito que hoje se pratica, é um fenômeno inteiramente moderno. A ordem estabelecida no campo foi virada de cabeça para baixo pela primeira vez em 1910, com a Revolução Mexicana, ao preço de 1 milhão de mortos. À frente de um exército de camponeses, Emiliano Zapata distribuiu terras na marra e, como Caio Graco, acabou assassinado. A semente plantada na revolução demorou duas décadas para germinar. Mas nos anos 30 o México entregou 70 milhões de hectares de áreas agrícolas a 3 milhões de lavradores, realizando uma das maiores redistribuições de terra da História.
Sete anos depois da Revolução Mexicana, os comunistas russos aboliram a propriedade privada da terra com um decreto assinado no dia seguinte à tomada do poder. O abismo ideológico entre as duas experiências pioneiras marcou, dali para diante, a história das mudanças nesse âmbito. O México tomou a terra de grandes fazendeiros e a distribuiu entre vários, menores, multiplicando o número de proprietários. A União Soviética expropriou a terra de todos em benefício de um único grande patrão, o Estado, o nome verdadeiro da "propriedade do povo". Os dois modelos foram amplamente copiados, quase sempre misturados e adaptados às circunstâncias específicas de cada país. Bandeiras vermelhas e camponeses em armas, contudo, tão marcantes nas duas reformas pioneiras, raramente voltaram à cena. A reforma agrária é quase sempre iniciativa de governos às voltas com crises, que precisam resolver ou amainar. Algumas foram impostas por exércitos de ocupação, como fizeram o Exército Vermelho na Europa Oriental e os Estados Unidos no Japão e na Coréia do Sul.
O objetivo básico das reformas em países não comunistas é melhorar a vida do homem do campo e redistribuir a renda a seu favor. Depois da II Guerra, percebeu-se também que se tinha ali um excelente instrumento para dar à agricultura um papel estratégico no desenvolvimento dos países pobres. São dos anos 40 e 50 as quatro grandes experiências em países de economia de mercado - Japão, Taiwan, Coréia do Sul e Egito -, com decisiva influência nas que vieram depois. Como os três primeiros se transformaram em potências econômicas, suas experiências servem como vitrine. Comparadas à coletivização forçada na União Soviética, a grande experiência socialista nos anos 30, que custou 6 milhões de mortos e resultou numa agricultura até hoje ineficiente, as reformas asiáticas são mesmo de dar água na boca.
No final da II Guerra, os três países tinham em comum a enorme concentração da posse da terra e a economia destroçada. Cerca de 70% do solo agrícola japonês era cultivado por arrendatários - os kosakus -, que entregavam aos proprietários ausentes metade da produção. No comando das forças de ocupação americanas e, como tal, imperador de fato, o general Douglas MacArthur simplesmente exigiu uma reforma agrária em 1946. O governo japonês tentou safar-se propondo o teto de 5 hectares para as propriedades rurais - artifício que, visto o tamanho nanico do latifúndio japonês, limitaria a reforma a somente 20% das terras. MacArthur, que tinha entre seus objetivos aniquilar o poder político dos latifundiários, um dos pilares do militarismo japonês, impôs 1 hectare, o tamanho de uma chácara de fim de semana no Brasil.
O terreno excedente foi desapropriado a preço vil e revendido aos agricultores com financiamento camarada. Toda essa revolução, que entregou lotes a 4 milhões de famílias e acabou com os resquícios de feudalismo na estrutura social, demorou apenas 21 meses. "Ao incorporar os kosakus ao processo político, a reforma foi fundamental para a modernização do país", diz Ikutsune Adachi, diretor do Centro de Pesquisas Sociais em Agronomia, em Tóquio. Do ponto de vista macroeconômico, a contribuição foi bem menor. O minifúndio japonês, nascido da reforma de 1946, depende ainda hoje para sobreviver de gordíssimos subsídios estatais e produz o arroz mais caro do mundo. É mais negócio, porém, pagar para manter o agricultor no campo do que lhe dar emprego na cidade.
A ironia é que essas grandes transformações foram obras de governos profundamente anticomunistas. Expulso da China continental pela vitória comunista, o generalíssimo Chiang Kai-chek reproduziu o modelo japonês em Taiwan. A inovação local foi a indenização parcialmente paga em ações, convertendo os antigos latifundiários em sócios da industrialização do país. O resultado social foi de tirar o chapéu: em 1952 a reforma agrária tinha transferido aos agricultores o equivalente a 13% do PIB, pacificando o campo e criando uma nova classe de consumidores.
A situação sul-coreana era agravada pela falta de espaço (só 4% do território é cultivável), pela má distribuição da posse e pela guerra, que continuou devastando o país até 1953. O governo anunciou regras tão severas que a maioria dos proprietários, temendo o calote das indenizações, se apressou em vender a terra diretamente ao arrendatário. O impacto na distribuição de renda foi superior ao ocorrido no Japão e em Taiwan e garantiu a comida barata de que o país precisava para se transformar numa potência econômica.
De forma muito parecida com a Coréia do Sul, só 4% do solo egípcio era aproveitável para a agricultura. A maior parte dessa terra estava nas mãos de uma classe de 12.000 proprietários. Dez milhões de felás - os camponeses e arrendatários do Vale do Nilo - penavam sob aluguéis exorbitantes, que chegavam a 75% da produção. Seis semanas depois de derrubar a monarquia, em 1952, Gamal Abdel Nasser acabou com as grandes propriedades. Cerca de 1,7 milhão de egípcios receberam lotes com tamanho médio de 1 hectare cada um. Em quantidade de terra e número de beneficiados, foi a maior reforma agrária dos anos 50. O resultado, contudo, nem se compara ao dos países asiáticos. O regime detonou o poder dos latifundiários - mas os felás continuam miseráveis como sempre.
O pós-guerra foi também o período em que a União Soviética impôs seu modelo agrícola à Europa Oriental, ainda que a maioria dos países tenha conservado algum tipo de pequena propriedade individual. A China fez a maior revolução camponesa de todos os tempos e, no início dos 60, Cuba implantou a versão caribenha da agricultura coletiva. Diante do avanço comunista, a reforma agrária ganhou impulso, também, como ferramenta da Guerra Fria. Na periferia latino-americana, governos de alguma inclinação esquerdista produziram suas próprias reformas. No Peru e na Bolívia, com grandes populações indígenas, a redistribuição de terras aliviou injustiças mas pouco contribuiu para aumentar a produção ou amenizar a miséria. No Chile, o processo foi peculiar. A reforma, iniciada pela Democracia Cristã e ampliada pelo socialista Salvador Allende, obviamente tropeçou com o golpe militar. A ditadura, porém, não devolveu a terra à velha oligarquia rural. Os lotes, de tamanho reduzido, foram comprados por capitalistas urbanos, que modernizaram a produção e iniciaram o modelo moderno de exportação de alimentos, principalmente frutas.
A reforma agrária saiu da agenda dos países a partir dos anos 70. Ou já tinha sido feita, com resultados variados, ou não era mais necessária como fator de desenvolvimento. "Até os anos 60, ela era fundamental para a modernização. Depois, a produtividade da agricultura moderna mostrou-se capaz de garantir o abastecimento sem outra revolução que a tecnológica", analisa o professor Bastiaan Reydon, do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp. "Como a própria agricultura perdeu importância na economia global, a reforma agrária reduziu-se a uma questão de justiça social." Os teóricos do desenvolvimento, que também saíram de moda, agora mudaram de enfoque e temem que a fragmentação do solo agrícola em propriedades menores prejudique a escala da produção.
"Reforma agrária dá certo quando se consegue o que se queria, seja aumentar a produção de alimentos, seja resolver problemas sociais graves", ensina o professor José Eli da Veiga, da Faculdade de Economia da USP. "A História mostra que isso só acontece naquelas realizadas rapidamente, de um a três anos no máximo. Quando entrava, é porque a sociedade não está preparada e a reforma está condenada ao fracasso." Mudanças radicais na posse da terra não são garantia absoluta de benefício econômico. Muitas vezes, nem mesmo de justiça social. A agricultura soviética oferecia condições de vida tão ruins que, para impedir a migração para a cidade, o governo negou passaporte interno aos membros das fazendas coletivas até 1974. O fim do comunismo não mudou muito as coisas, exceto pelo fato de que agora os agricultores podem largar o campo. Por falta de interessados em se tornar proprietários, o Estado continua dono de 95% da terra.
No México, onde tudo começou, a reforma agrária agoniza. O ejido, a propriedade comunal explorada individualmente, segundo a tradição indígena, viveu anos de relativa prosperidade entre 1940 e 1965, mas retrocedeu diante da produtividade crescente das modernas empresas rurais. Sessenta anos depois da revolução, o México está de volta ao ponto de partida. Em Chiapas, no extremo sul, alçou-se o exército de camponeses que reivindica a estirpe zapatista. Na terra onde nasceu, a reforma agrária produziu um paradoxo dramático: transformou uma imensa massa de sem-terra numa imensa massa de pequenos proprietários sem perspectivas. É o que de mais parecido existe com o Brasil.
fonte - http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/reforma_agraria/contexto_5.html
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