REVISTA VEJA de
Está cada vez mais difícil, em nosso mundo de hoje.
encontrar inocentes. No exalo momento em que estiver lendo estas linhas, o
leitor poderá muito bem estar sendo culpado pela prática de algum delito sério,
mesmo que não saiba disso - e provavelmente não sabe. Como poderia saber? As
noções de certo ou errado, de bem ou mal ou de justo e injusto, cada vez mais,
são definidas por dezenas de "causas", em relação às quais é
indispensável estar do lado correto. E que lado é esse? É o lado dos donos ou
dos militantes dessas causas - tarefa complicada, considerando-se que elas se
multiplicam sem parar, não têm conexão nenhuma entre si e sua própria
existência, muitas vezes. é completamente desconhecida do público em geral. Com
o desmanche cada vez mais rápido de qualquer valor ou princípio na atividade
política, e o falecimento da ideia geral de "direita" e
"esquerda", o campo do "bem" vai sendo ocupado por
movimentos que defendem ou condenam todo tipo de coisa. Importa cada vez menos,
também, o divisor de águas formado pelo conjunto de valores morais como
integridade, decência, gratidão, generosidade, honradez, cortesia e tantos
outros que marcavam a correção do indivíduo, do ponto de vista pessoal, na vida
de todos os dias. O cidadão, hoje, pode ser tudo isso ao mesmo tempo, mas ainda
assim não será inocente basta não concordar com as bandeiras em voga, ou ser
indiferente a elas, ou não saber que existem.
Todas essas cruzadas se declaram proprietárias
exclusivas do bem e têm, cada vez mais, a certeza de que a lógica, os
argumentos baseados em fatos e o livre debate devem ceder lugar à fé - a fé dos
dirigentes e militantes das "causas", que se julgam moralmente
superiores e portanto, autorizados a exigir que todos abram mão do seu direito
a raciocinar e simplesmente concordem com eles. O lado escuro disso tudo é que
a defesa de tais bandeiras está se tornando cada vez mais fanática - e o
resultado é a criação, pouco a pouco, de um novo totalitarismo. Nega-se as
pessoas o direito de discordar de qualquer delas e, principalmente, de criticar
seja lá o que proponham; não é permitida nem a simples neutralidade, pois quem
é neutro é considerado cúmplice do mal.
Os efeitos práticos são muito parecidos com os que
se produzem nas ditaduras - e sua primeira vítima é a liberdade de pensar e de
exprimir o que se pensa.
Muito de todo esse ruído é simplesmente cômico; além
disso, ao contrário do que acontece nas tiranias, os líderes das novas causas
não têm a seu dispor a força armada para obrigar o público a obedecer a suas
decisões. Mas. em ambos os casos, sua atividade está gerando cada vez mais
consequências na vida real. Ainda há pouco, um anúncio da agência AlmapBBDO
mostrava um gato preto subindo no capô de um Volkswagen, numa brincadeira 100%
inocente a respeito de sorte e azar. Ideia proibida, hoje em dia. Grupos que
defendem a causa dos gatos, de qualquer cor, decidiram que o comercial
estimulava a "perseguição" e o "desrespeito" ao gato preto,
e exigiram da empresa que o comercial fosse retirado do ar. Ganharam: a
Volkswagen, uma das maiores companhias do mundo, com mais de noventa fábricas.
550.000 empregados e faturamento superior a 200 bilhões de dólares em 2012,
ficou com medo do pró-gato e topou, sim, cancelar o anúncio. Há uma coisa muito
parecida com isso - ela se chama censura. A AlmapBBDO, uma das agências de
publicidade mais respeitadas do Brasil, queria levar o comercial ao público,
como a imprensa queria publicar notícias durante a ditadura militar. Mas a
cruzada dos gatos, como acontecia na época em que o governo cortava as notícias
que lhe desagradavam, não quis. Nas duas situações uma pela força bruta, a
outra pela pressão bruta - o resultado prático é o mesmo: aquilo que deveria
ter sido publicado não o foi. Qual é a diferença?
Episódios como esse vão se tornando comuns e, para
piorar as coisas, deixam atrás de si uma nuvem radioativa que contamina o
ambiente do pensamento e faz com que as pessoas fujam das áreas de perigo. É
muito pouco provável que a AlmapBBDO volte a criar comerciais com algum gato no
enredo, ou qualquer outro animal. Para quê? Outras agências vão tomar, ou já
tomaram, a decisão de cortar o reino animal do seu universo criativo e também,
por via das dúvidas, o reino vegetal e o reino mineral, pois é possível que
provoquem objeções dos movimentos que atribuem direitos civis às árvores, ou às
pedras, ou sabe-se lá ao que mais. Os jornalistas e os órgãos de imprensa, com
frequência, vão pegando uma alergia cada vez maior a tratar de certos assuntos.
"Isso vai dar confusão", ouve-se todos os dias nas redações.
"Melhor a gente ficar fora dessa." O mesmo se aplica a políticos, por
seu natural pavor de perder votos, a artistas que não querem ficar mal "na
classe" e a mais um caminhão de gente capaz de ter posições claras, mas
incapaz de arrumar coragem para falar delas em público.
É apenas natural que a situação tenha ficado assim.
Não vale a pena, para a maioria, dizer o que pensa e ser imediatamente
amaldiçoado como racista, cruel com os animais, homofóbico, nazista, destruidor
da natureza, inimigo da fauna e da flora, poluidor de rios, lagos e mares,
vendido aos interesses das "grandes empresas", carrasco das
"minorias", assassino de bagres e por aí afora. Ser um mero defensor
da luz elétrica, e achar natural, para isso, que sejam construídas usinas
geradoras de energia passou a ser, no código da "causa ambiental", um
delito grave. Pior ainda é ser chamado de "agricultor" ou
"pecuarista" - as duas palavras passaram a ser utilizadas pelos
militantes como um puro e simples insulto. Eis aí. por trás de todo o seu
verniz de atitude moderna, democrática e defensora da virtude, a essência do
totalitarismo que vai sendo imposto pelas "causas" do bem. O alicerce
central de sua postura é raso e estreito: "Ou você pensa como eu. ou você
é um idiota; ou você pensa como eu. ou você está errado". Ou você é coisa
ainda muito pior, dependendo do grau de ira que sua opinião despertou neste ou
naquele movimento.
Se discordar, por exemplo, de uma mudança na lei
trabalhista, vão acusá-lo de ser a favor da volta da escravatura. Se criticar a
doação de latifúndios a tribos de índios, pode ser chamado de genocida. Se
achar errado o Bolsa Família, vai ser condenado como defensor da miséria. Se
sustentar que o sistema de cotas para negros nas universidades tem problemas
sérios, vira um racista na hora. Se julgar que os governos do PT são um exemplo
mundial de incompetência, ignorância e vigarice, será incluído na lista negra
dos que são contra o povo, contra a pátria e contra as eleições. Falar mal do
ex-presidente Lula, então, é um caso perdido. Como ele diz em seus discursos
que o seu segundo objetivo na vida é governar para os pobres (o primeiro,
segundo uma confissão que fez há pouco, é "viver o céu aqui mesmo na
terra"), quem não gosta do ex-presidente só pode ser contra os pobres. A
alternativa é ouvir que você, até hoje, não se conforma com o fato de que
"um operário tenha chegado à Presidência" etc. etc., como o próprio
Lula nos diz todo santo dia. há mais de dez anos.
Com certeza há pessoas boníssimas, e sinceramente
interessadas no bem comum, na maioria das "causas" em cartaz hoje em
dia não lhes passaria pela cabeça, também, imaginar que estão construindo um
mundo totalitário. Mas sua recusa em raciocinar um pouco mais, e em agredir a
lógica um pouco menos, acaba levando-as, mesmo que não percebam, a uma postura
de autoritarismo aberto diante da vida. A modelo Gisele Bündchen, por exemplo,
propõe nada menos que uma "lei internacional" obrigando todas as
mulheres a amamentar seus filhos. Gisele pode ser mesmo uma devota dessa
postura, mas, ao querer que sua opinião pessoal seja transformada em
"lei", ela mostra uma outra devoção: o desejo de mandar no
comportamento dos outros. E as mulheres que não querem amamentar - como ficam
os seus direitos? Qualquer pessoa que quer nos impor uma escolha forçada, diz o
psicanalista Contardo Calligaris, de São Paulo. provavelmente está interessada,
acima de tudo, em "afirmar e consolidar seu poder sobre nós".
Um outro tóxico que alimenta essa marcha da
insensatez é a ignorância. Somada à decisão de atirar primeiro nos fatos, e
perguntar depois quais eram mesmo esses fatos, leva a episódios de circo como o
movimento "Gota d'Água" - no qual um grupo de atores e atrizes tentou
demonstrar, no fim de 2011, que a usina de Belo Monte seria uma catástrofe sem
precedentes para o Rio Xingu e para a ecologia brasileira cm geral. No vídeo
que gravaram com o propósito de provar suas razões, confundiram o Pará com Mato
Grosso, colocaram a usina a mais de 1 000 quilômetros do lugar onde está sendo
construída e denunciaram a inundação de terras ocupadas por índios quando não
há um único índio na área a ser alagada. Foi um desempenho digno de entrar na
lista das piores respostas do Enem. Mas os artistas continuam achando que estão
certíssimos: sua "causa" é justa, dizem eles, e meros tatos como
esses não têm a menor importância. pois o que interessa é o triunfo do bem.
"Não há expediente ao qual o homem deixará de
recorrer para evitar o real trabalho de pensar", disse, no fim dos anos
1700. o grande mestre da arte inglesa do retrato, sir Joshua Reynolds. Hoje,
mais de 200 anos depois, sua tirada é um resumo praticamente perfeito da
turbina-mãe que faz girar a máquina das "causas" justas. Nada as
incomoda tanto quanto o ato de pensar. Preferem receber insultos, porque podem
responder com insultos - o que não toleram é a tarefa de raciocinar em cima de
fatos, reconhecer realidades e convencer pelo uso da inteligência. Algum tempo
atrás esta revista publicou, com a assinatura do autor do presente artigo, um
conjunto de considerações sobre o que julgava serem exageros, equívocos ou
distorções do chamado "movimento gay". Tudo o que foi escrito ali
recebeu uma fenomenal descarga de ódio. histeria e ofensas, nas quais foram
incluídas diversas maldições desejando uma morte rápida para o autor. Mas o que
realmente deixou a liderança gay fora de si, acima de qualquer outra coisa, foi
a afirmação de que casamento de homem com homem, ou de mulher com mulher, não
gera filhos. É apenas um fato da natureza mas é exatamente isso, o fato, o pior
inimigo das "causas". Não pode ser anulado por abaixo-assinados.
redes sociais ou passeatas. A única saída é mantê-lo oculto pelo silêncio.
Por essa trilha, caminhamos para um mundo de
escuridão.