quinta-feira, 30 de maio de 2013

Devotos de um vigarista, por Olavo de Carvalho


 

A Folha de S. Paulo perguntou, meses atrás, a quatro dos seus mais típicos mentores por que ainda é importante ler Karl Marx. Nenhum deles deu a resposta certa: porque ninguém pode ignorar, sem grave risco, as ideias que mataram mais seres humanos do que todos os terremotos, furacões, epidemias e desastres aéreos do último século, mais duas guerras mundiais. 
 
Infringindo a regra elementar do próprio Marx, de que a verdadeira substância de uma ideia é sua prática e não sua mera formulação conceitual, três deles mostraram enxergar o marxismo como pura teoria, separada da ação que exerceu no mundo, e incorreram no delito de "formalismo burguês", o mais abominável para um cérebro marxista. Eu não tomaria aulas de marxismo com esses sujeitos nem se eles me pagassem.
 
O quarto, prof. Delfim Netto, na ânsia de redimir-se ante a intelectualidade esquerdista do pecado de ter servido à ditadura militar, caprichou no hiperbolismo e atribuiu a Karl Marx o dom da eternidade, que numa perspectiva marxista não faz o menor sentido.
 
O prof. José Arthur Gianotti recomendou reler Marx cuidadosamente, porque "sua concepção da história foi adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de religiosidade."
 
Adulterada? Colada? Nenhum dos continuadores de Marx revelou tanta dívida intelectual para com Charles Darwin quanto o próprio Karl Marx, que declarou ser sua filosofia nada mais que a interpretação darwinista 
 
da História e só não dedicou O Capital ao autor de A Origem das Espécies porque este não permitiu. Quanto à tonalidade religiosa, ou pseudo-religiosa, ela é mais do que notável nos Manuscritos de 1944 e ressoa em cada linha das verberações proféticas anticapitalistas espalhadas ao longo de toda a obra de Marx. O prof. Gianotti é que quer separar artificialmente aquilo que nasceu junto. "Reler cuidadosamente"? Não é preciso. Bastaria ter lido.
 
Mas o mais cômico dos quatro foi o sr. Leandro Konder, que intelectualmente já saiu do mundo dos vivos há três décadas e não precisaria ter abandonado seu estado de animação suspensa para confirmar, na Folha, aquilo que ele já provou centenas de vezes: sua prodigiosa incultura, seu total desconhecimento dos assuntos em que opina.
 
Disse ele: "Os grandes pensadores são grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. 
 
A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu conservadorismo."
 
Os conhecimentos que não só ele pessoalmente, mas toda a corriola de mentecaptos marxistas deste País tem daquilo que ele chama "perspectiva burguesa" podem ser avaliados pelo Dicionário Crítico do Pensamento da Direita, em que 104 dessas criaturas ridículas se encheram de dinheiro público para dar um show de ignorância como nunca se viu no mundo. 
 
 
Essa gente simplesmente não estuda os pensadores que parecem antipáticos ao seu partido. Adivinha ou cria suas ideias à distância, partindo de fofocas, piadas, fantasias preconcebidas e lendas urbanas que constituem, no seu ambiente mental provinciano, a única bibliografia requerida para quem deseje pontificar a respeito. Se fazem isso comigo, que tenho uma obra publicada relativamente escassa, por que não o fariam com os autores de muitas dezenas de volumes, como Leibniz, Husserl, Voegelin ou o nosso Mário Ferreira dos Santos?
 
A um boboca que desconhece tudo aquilo que despreza, é forçoso que o horizonte de problemas pensado por Karl Marx pareça, em comparação com o nada, "vastíssimo". Mas Marx, em verdade, pensou num único problema: a luta de classes. Todos os outros conceitos da sua filosofia foram recebidos prontos, como os de dialética, de alienação ou de comunismo, ou são apenas afirmados sem discussão crítica, como o próprio "materialismo dialético", ou derivam da luta de classes por mero automatismo, como os de ideologia, superestrutura etc. 
 
Longe de ampliar o horizonte dos problemas filosóficos, o que Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como "proibição de perguntar".
 
Já nem falo dos grandes problemas clássicos como o fundamento do ser, o sentido da existência, o bem e o mal, etc. Nem o próprio conceito de "valor", essencial na sua economia, ele discute. Postula-o no começo de O Capital e segue adiante, sem notar que disse uma tremenda asneira.
 
Comparado ao de Leibniz, de Aristóteles ou de Platão, o horizonte de problemas de Marx é deploravelmente pobre. Sua cultura literária é a de um professor de ginásio, seus conhecimentos de história da pintura, da arquitetura e da música praticamente nulos, suas noções de teologia não fazem inveja a um seminarista. 
 
Pergunto-me, por exemplo, qual a relevância do pensamento de Karl Marx para as ciências biológicas, para a física, para as matemáticas. Zero. A breve incursão do seu amigo Engels nesses domínios foi um vexame espetacular.
 
Em matéria de ética, então, o tratamento que Marx dá ao problema da felicidade humana é decerto o mais besta, o mais grosseiro de todos os tempos: tomemos o dinheiro da burguesia e todos serão felizes. Enfeitado o quanto seja, o argumento é esse. 
 
Só por esse detalhe o homem já mereceria o adjetivo com que o resumiu Eric Voegelin: "Vigarista".
 
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
 
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