domingo, 3 de maio de 2020

Algumas curiosidades que a COVID-19 desafia a discutir

Algumas curiosidades que o COVID-19 desafia a discutir.

Tenho ficado muito instigado com as coisas que estão ocorrendo no mundo por causa da pandemia do COVID-19. Depois de focar por semanas na busca de informações úteis, acabei saturado de notícias macabras fornecidas pelas redes televisivas. Mudei o foco, fui ver melhor o que os dados sobre a pandemia estavam dizendo. Então estudei tabelas, gráficos, fórmulas e outros dados, afinal com a quarentena tenho mais horas livres do que de costume. Existem muitas coisas importantes e aqui seguem algumas delas:
1 - Este fenômeno de contágio global por vírus, como vários outros fenômenos físicos ou sociais, pode ser explicado por gráficos e equações.

Este gráfico representa o modelo SIR (Suscetíveis,  Infectados e Recuperados) para contágio ao longo do tempo. Começa com uma sociedade totalmente suscetível já que não existem imunizados. À medida que o vírus se instala, verifica-se o início do contágio. Algumas poucas pessoas vão manifestar os sintomas mais graves. Uma quantidade muito maior, cerca de dez vezes mais já que poucos são testados, que também foram expostos ao vírus apresentam sintomas brandos ou mesmo não os apresentam e se curam sozinhos tornando-se imunizados. O que se percebe é que quanto mais pessoas contraem a doença mais rápido vai sendo o crescimento até que a quantidade de pessoas suscetíveis vai decaindo, a de recuperados vai aumentando e, não tendo mais pessoas disponíveis para o vírus atuar já que a maioria está recuperada, acaba a fase de contágio.
2 - O trabalho dos governos é suavizar a inclinação destas curvas para que o pico dos casos de doentes não ultrapasse a capacidade de atendimento do sistema de saúde. Diversos fatores influem para que as curvas de contágio não sejam exatamente iguais em todos os lugares. Em uns lugares são mais aceleradas, em outros mais suaves e tudo tem a ver com o fato de como as pessoas interagem entre si (usam máscaras? Mantem distanciamento social?), a quantidade de vezes com que se dão as interações, a densidade populacional, a temperatura regional, o perfil da população (idosos, doenças pré-existentes etc.).
3 - A testagem é crucial para se perceber o fenômeno com mais precisão, o que não está acontecendo, poucos são testados. O próprio Ministério da Saúde estima que a subnotificação dos casos de Covid-19 fique entre 90-94%.

Isso quer dizer que os 64 casos confirmados aqui em Jequié (02 de maio) representa cerca de 7% da realidade existindo provavelmente um total de 840 pessoas portadoras do vírus, e dentre estes 20% são assintomáticos (168 pessoas) que são os verdadeiros propagadores do vírus, pois estão indo ao mercado, farmácia, padaria, clínicas e ninguém sabe que estão disseminando o vírus, nem eles próprios. Acredito que o comportamento da disseminação da infecção em Jequié ainda avance muito. Especialistas dizem que não adianta mais fechar o comércio, ou manter o isolamento. Isso seria importante para não deixar o vírus entrar, mas uma vez instalado, a epidemia segue seu curso de contágio. Ações individuais e do estado vão retardar isso, mas não podem mais impedir. Outra coisa: o vírus é muito contagioso, mas tem baixa letalidade.
4 - O exemplo de outros países que não decretaram quarentena restritiva (Suécia, Alemanha, Japão, Austrália) mostra que os problemas não são resolvidos só por leis e decretos, ainda mais se não tiverem a adesão dos cidadãos. Lá, com esclarecimento e educação os cidadãos se sentem responsáveis por suas ações e as consequências decorrentes, os problemas são resolvidos mais facilmente. Não esperam que o estado resolva tudo.
5 - O foco de atenção da rede hospitalar para tratar casos de COVID-19 fez aumentar os óbitos por outras enfermidades. Em New York aumentou oito vezes as mortes por problemas cardíacos comparada ao mesmo período do ano passado. Os pacientes evitavam sair de casa mesmo se sentindo mal para não correr o risco de pegar a doença nos hospitais, acrescente o medo difundido pelos noticiários e a grande ansiedade contribuindo para suas mortes.
6 – E por falar em “comparar”, só percebemos a gravidade de uma situação quando a relacionamos com outra equivalente.
Se tomarmos as mortes decorrentes pelo COVID-19 de forma absoluta os números são assustadores e nos levam a decisões difíceis, as vezes equivocadas. Além disso fica difícil a comparação de casos. Tente fazer isso para países que têm populações diferentes, não dá. Então toma-se como referência uma base populacional comum para fazer a análise, por exemplo “x” casos por milhão de habitantes.

O comportamento da curva de mortes por COVID-19 no Brasil ainda está subindo, porém de forma mais suave e com números muito menores que os de países como EUA, Suécia, Espanha, Inglaterra, França, Itália, Canadá etc. Isso não é um passaporte para relaxarmos nas medidas de proteção já que as coisas sempre podem piorar, depende do que fizermos.
Dados da OMS (02 de maio) indicam que existe no mundo três milhões de casos confirmados de COVID-19 com pouco mais de duzentas mil mortes; o Brasil é um dos países com transmissão comunitária (o vírus já está entre as pessoas nas cidades) e confirmou 85.380 casos e 5.901 mortes pela doença até a tarde do dia 30 de abril de 2020.
7 – A boa notícia para o Brasil é que os especialistas já vêm uma luz no fim do túnel. Chegaram a marcar uma data fim da epidemia entre outubro e novembro de 2020. Por hora, o que vamos testemunhar é um aumento mais rápido do número de casos até chegar ao pico do contágio em meados de maio quando começa a desaceleração mais rápida até julho de 2020. Só nos resta verificar se os especialistas acertarão sua previsão.

8 - A saúde psicológica de muitas pessoas está sendo seriamente afetada e os efeitos provavelmente durarão pelo medo exagerando alterando o comportamento social e em “doses” cada vez maiores. O que sentimos sobre as pessoas ao nosso redor e a quem amamos, mas também sobre estranhos, não há dúvida de que está sendo afetado por essa pandemia. A restrição de deslocamento, a necessidade de proximidade física nas famílias, está revelando muitas qualidades como diálogos, jogos, brincadeiras, estudos, interações sociais virtuais, entre outras, mas em outros casos têm acirrado “defeitos de caráter” refletido no aumento dos casos de violência doméstica, abuso infantil e alcoolismo. O estabelecimento de rotinas produtivas é de fundamental importância para saúde mental.
Existem muitos temas a serem estudados. Isso não é um atributo dos especialistas, mas qualquer um, com alguma base, um bom método e disciplina, pode chegar a conclusões interessantes. Temas como saúde pública, segurança, impactos econômicos e sociais (no planeta, nos países, no estado, cidade, na nossa família), política e politização, eleições... são desafios. A verdade é que a pandemia mudou a maneira como trabalhamos, estudamos, nos divertimos, praticamos esportes etc., afetando uns grupos sociais bem mais do que outros. Não sabemos se todas essas mudanças, tão drásticas, vão durar ou se dissipar com o tempo. Espero que aprendamos alguma coisa com isso.

José LAMARTINE de Andrade Lima Neto
Doutorado em Análise Cognitiva, Psicólogo



Algumas fontes de informação






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sábado, 28 de março de 2020

O MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL E AS VOZES DISSONANTES



José Lamartine de Andrade LIMA NETO
Bacharel em Psicologia. Especialidade em Saúde Mental e Dependência Química.
Doutorado em Difusão do Conhecimento (DMMDC/UFBA).
joselamartineneto@gmail.com
Docente do IFBA
Luana Machado ANDRADE
Bacharel em Enfermagem. Especialista e Mestre em Enfermagem e Saúde/Saúde Pública (PPGES-UESB).
luanamachado87@hotmail.com
Docente de enfermagem (UNEB/Departamento de Educação-Campus XII).

RESUMO
Nas últimas décadas, o problema representado pelos transtornos mentais tem ocupado cada vez mais a agenda das políticas de saúde. No Brasil no final dos anos 1980, a luta pelos direitos humanos levou à construção da “Reforma Psiquiátrica”. O artigo apresenta uma visão crítica sobre a implantação da Reforma Psiquiátrica em nosso país com base na metodologia da pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se que existe uma carência nas bases de dados científicas sobre críticas à Reforma Psiquiátrica e o Movimento Antimanicomial, bem como que a sua implantação se deu por fomento político da Organização Mundial da Saúde como forma de quebrar uma hegemonia do pensamento médico.

Palavras-Chave: História da Psicologia, Reforma Psiquiátrica, Ideologia


Trabalho completo disponível em -
https://www.researchgate.net/publication/360963333_AS_VOZES_IGNORADAS_NO_MOVIMENTO_ANTIMANICOMIAL


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Três cenários do isolamento social em epidemias




Gráfico mostra as curvas de contágio em três cenários dependendo da forma de tratamento de uma epidemia. 

O cenário (1) seriam as consequências quando nada é feito e nenhuma mudança de comportamento ocorre. A disseminação é rápida e intensa. Colapso dos sistemas de saúde.

No cenário (2) ocorre o isolamento parcial com achatamento da curva diminuindo o risco de sobrecarregar os serviços de saúde. Muitas pessoas pegarão a doença, desenvolverão imunidade e trará menos impactos econômico-sociais. 

No caso do cenário (3) ocorre o isolamento total (lock-down) dará tempo dos sistemas de saúde se prepararem. Trás como agravante forte impacto na economia e na vida das pessoas. Inicialmente poucos serão expostos ao vírus e com isso não terão a imunidade necessária para quando a quarentena for cancelada. Surgirá o efeito rebote?



























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Isolamento vertical ou horizontal

A maior parte das informações são um texto de André Biernath*

Quarentena. Supressão. Mitigação. Isolamento (vertical ou horizontal). Finalidade é achatar a curva.

Diante da ameaça do novo coronavírus, boa parte do mundo adotou estratégias de restrição de contato social entre os seus cidadãos.

Esse ponto é fácil de explicar: se um sujeito está infectado e fica em casa, sem interagir com outros, ele não passa o vírus da Covid-19. Por outro lado, quem está saudável e permanece fechado em seu lar, não corre o risco de pegar a doença.

Mas é justamente aí que a coisa começa a complicar: se as pessoas não trabalham, como fica a economia? E as empresas, como vão obter o dinheiro para pagar seus funcionários? É legítimo o medo das consequências de uma recessão global: afinal, desemprego e aumento da pobreza também produzem sérios impactos na saúde.

Pensando nisso, alguns governantes e cientistas passaram a sugerir um caminho alternativo: o isolamento vertical. Nas perguntas abaixo, você vai entender direitinho o que é essa estratégia e porque ela tem tudo para ser ainda mais desastrosa.




O que é isolamento vertical?

A ideia é simples: em vez de mandar todo mundo para casa, fechar escolas e empresas, por que não só isolar as pessoas mais vulneráveis ao novo coronavírus? Pelo que se sabe até agora, a taxa de complicações e mortes é bem maior em alguns grupos: indivíduos acima de 60 anos, portadores de diabetes, hipertensão e doenças cardíacas ou pulmonares.

Ao menos em tese, isso permitiria que os mais jovens voltassem aos estudos e ao trabalho, fazendo girar a roda da economia. Seguindo ainda essa linha de raciocínio, as companhias manteriam seu ritmo de trabalho e as pessoas continuariam a consumir com certa normalidade.

Há outro argumento por aqui: com os indivíduos de 20, 30, 40 e 50 e poucos anos saindo de casa, invariavelmente elas se infectariam com o coronavírus. Como não fazem parte de grupos de risco, não teriam grandes consequências à saúde e ficariam protegidos. Em longo prazo, isso criaria uma “imunidade de rebanho” e evitaria novos surtos ou epidemias provocadas por esse agente infeccioso.

O isolamento vertical foi testado em algum lugar?

Até certo ponto, sim. Nas primeiras semanas de março, os governos de Reino Unido e Holanda tomaram poucas ações para combater o coronavírus. De acordo com reportagem da revista Science, o primeiro-ministro holandês Mark Rutte rejeitou “fechar o país completamente” e optou por um “contágio controlado” de sua população.

A mesma diretriz aconteceu nas terras da rainha Elizabeth II (cujo filho, o príncipe Charles, testou positivo para a Covid-19): deixar que os mais jovens se infectem e proteger somente a parcela mais vulnerável de nossa população.

O que fez esses países voltarem atrás?

Um time do Imperial College London, na Inglaterra, publicou uma ampla pesquisa mostrando qual o impacto das medidas não-farmacológicas para reduzir  a mortalidade pelo Covid-19.

O trabalho avaliou diferentes cenários e as consequências que eles teriam tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos. Vamos explicar as duas estratégias principais que foram avaliadas:

Mitigação: foca em frear, porém não necessariamente parar a circulação do vírus. Protege aqueles que estão sob maior risco. É o isolamento vertical que os próprios ingleses vinham apostando.
Supressão: tenta reverter o crescimento do número de casos, reduzindo o máximo possível o contato social de todos os habitantes. É o isolamento geral praticado em partes da China e em vários outros países pelo mundo.
E o que os resultados mostraram? Mesmo num cenário com o pico de casos reduzido, seria necessário o dobro de leitos de UTI para suprir a demanda de pacientes em estado crítico no Reino Unido. Seriam milhares de mortes nesses dois países, que estão entre os mais ricos e poderosos do globo.

Quais seriam os principais problemas do isolamento vertical?

Em primeiro lugar, é difícil isolar apenas algumas pessoas. Pense na realidade dos idosos que moram com os filhos ou os netos. Se os mais jovens voltarem à escola ou ao trabalho e tiverem contato com o coronavírus, vão trazer a doença para dentro de casa. É complicado pensar num isolamento social completo diante da realidade de nossa sociedade.

E olha que o buraco é bem mais embaixo… De acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes, 14 milhões de brasileiros são  diabéticos e metade deles nunca fez o diagnóstico. O Ministério da Saúde calcula que uma a cada quatro pessoas que moram em nosso país têm hipertensão arterial. Dados da Organização Mundial da Saúde revelam que até 20% de nossos conterrâneos sofrem com asma e 10% convivem com a doença pulmonar obstrutiva crônica, a DPOC.

Traduzindo: são milhões e milhões de indivíduos que fazem parte do grupo de risco da Covid-19, muitos abaixo da faixa etária dos 60 anos. E, mais assustador ainda, vários deles sequer foram diagnosticados e vivem com a doença nas sombras. Como fica a saúde deles? Como vão se isolar com a exigência de voltar aos postos de trabalho?

Os defensores do isolamento vertical também se baseiam nos números da Coreia do Sul, país que obteve ótimos resultados no combate ao novo coronavírus (no dia 26 de março, eram 9 241 casos confirmados e 131 mortes por lá). O argumento é que a mortalidade da doença nesse país asiático ficou em torno de 1%, o que justificaria medidas mais suaves.

Mas a questão é que a Coreia do Sul adotou outra ação muito eficaz: fazer testes em massa na população. Desse modo, eles conseguiram detectar até os casos mais leves e isolar essas pessoas, para que elas não passassem a doença para os outros.

O drama é que o mundo não tem capacidade de realizar tantos exames assim. Não existe nem material, nem dinheiro para disponibilizar esse serviço em larga escala. O Brasil mesmo só realiza testes nos pacientes mais graves, que estão internados.

E o que isso significa na prática? Em resumo, não conhecemos o número real de infectados pelo novo coronavírus. Se a taxa de mortalidade foi 1% na Coreia do Sul, ela subiu para 2% na China. E saltou para quase 10% na Itália.

Uma simples conta de padaria dá a dimensão do problema. Vamos levar em consideração as projeções de que 70% da população mundial vai se infectar com coronavírus. Isso significa que 4,9 bilhões de pessoas terão a Covid-19 (a maioria com sintomas leves ou até imperceptíveis).

Se a taxa de mortalidade for de 1%, como visto na Coreia do Sul, estamos falando de 49 milhões de mortos no planeta, número que se aproxima ao da gripe espanhola de 1918.


Informações extraídas de:

*O que é isolamento vertical (e por que essa não é uma boa ideia)?
Estratégia de resguardar apenas os mais suscetíveis ao coronavírus pode ter efeitos catastróficos na saúde e na economia

Por André Biernath
Publicado em 27 mar 2020, 10h25
https://saude.abril.com.br/medicina/o-que-e-isolamento-vertical/


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Carta de um pai que não internou seu filho

Por Fabiane Leite

Estadão
09 de novembro de 2010 | 18h59

André e Geraldo em São Vicente (SP), em foto de Ernesto Rodrigues

Conheci a história de Geraldo e André Peixoto há seis anos, durante reportagem de balanço da reforma psiquiátrica. André teve o primeiro surto, sinalizador da esquizofrenia, na passagem para a idade adulta. O pai, Geraldo, horrorizado com os grandes hospitais psiquiátricos por onde André passou, o retirou de lá, mudou a vida, trocou a carreira de executivo pela de professor de natação para ficar ao lado do filho. Nesses anos, tornou-se um militante do direito dos pacientes de não serem trancafiados em hospitais e clínicas, mas acolhidos por serviços ambulatoriais e pela comunidade.

Na primeira entrevista, Geraldo me surpreendeu por não esconder as agruras de viver com uma pessoa com uma doença psiquiátrica. Não dourava a pílula. Mas defendia com carinho sua escolha, com espaço para a leveza _como a história de um amigo da família, também portador de esquizofrenia, que insistia ser uma águia. Geraldo o acolhia como um pássaro. Naquela época, André não estava bem, os médicos não acertavam o remédio. Tentamos fazer uma foto de ambos, mas André não quis.

Coincidentemente, meses depois, encontrei Geraldo durante uma “blitz” dos conselhos de psicologia e do Ministério Público em grandes unidades psiquiátricas que ainda persistem em diversas partes do País. Em uma das instituições, lá estavam pacientes amarrados, sem roupa. Um deles perguntou a Geraldo se era “papai noel” (por causa da barba branca) e pediu: “alta”!

Depois de o poeta Ferreira Gullar chamar a lei da reforma psiquiátrica de “idiota” e de defender a internação dos filhos, quis ouvir novamente a opinião de Geraldo. Seguiam vivendo juntos. Sugeri novamente a foto de ambos. André estava cada vez melhor, disse o professor. Cuidava do pai. Estava cada vez mais companheiro, relatou Geraldo. E a foto deu certo.

Há cerca de uma semana, André, que tinha 47 anos, morreu vítima de um infarto do miocárdio fulminante, em casa, ao lado do pai. Compartilho com vocês, com autorização do autor, trechos da carta que Geraldo enviou a centenas de amigos e apoiadores:

Há exatamente sete dias, nesta mesma hora, André, meu filho querido, morreu. Tudo começou e terminou comigo. Muitos, sequer o conheciam. Outros, o conheceram, e outros, até o acampanharam e cuidaram dele. Estas pessoas ficaram, indelevelmente, imarcadas em nossa memória.

André nasceu duas vezes, uma, de Wilma, sua mãe, e a outra, de mim, quando o assumi, depois de retirá-lo de um hospital psiquiátrico. Portanto, sinto-me fiador de todo esse querer bem, que vocês todos têm demonstrado por ele.

Tive um privilégio, uma graça por viver junto dele essa experiência, absolutamente fantástica, nestes vinte e cinco anos, desde o dia em que o retirei de um hospital psiquiátrico, até aquele momento, em que o vi, estendido no sofá da minha sala. Ele foi o meu grande mestre, mostrou-me o caminho, o caminho que ele percorreu e que, apesar da violência das crises e, das crises de violência, foi paradoxalmente, delicado e extraordinário. A experiência foi “humana, demasiadamente humana”. Fui atirado à correnteza da vida e da psicose, deixando-me levar sem resistência, aceitando e usando-a a meu favor, sabendo, como bom nadador, que se não o fizesse, iria , apenas, me exaurir. A correnteza, agora queridos amigos, se diluiu, se desfez, deixando-me nadar livremente. A vida foi maravilhosa comigo, por ter-me permitido esse encontro.

Valeu a pena, garoto! Valeu muito a pena!
André vive! Ontem, André era o meu objetivo – hoje, deixou de ser, pois eu o carrego comigo…
Obrigado, obrigado, obrigado…

Geraldo

Fabiane Leite é repórter da área de saúde desde 1999, dedicada principalmente à cobertura de temas de interesse da saúde pública e dos planos privados de saúde. Trabalhou no Jornal da Tarde, Folha Online, Folha de São Paulo e atualmente é repórter da seção Vida do jornal O Estado de São Paulo. Acredita que a saúde é o princípio básico para a felicidade.




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Ninguém aguenta uma pessoa delirante dentro de casa

CRISTIANE SEGATTO 29/05/2009

Um dos maiores críticos da falta de vagas para internação psiquiátrica, o poeta Ferreira Gullar conta a ÉPOCA a experiência de ter convivido com dois filhos esquizofrênicos - o que ainda está vivo mora hoje num sítio em Pernambuco.

SEM OPÇÕES Ferreira Gullar diz que as famílias sem recursos não têm onde pôr filhos com doenças mentais. Foto: Daryan Dornelles

O poeta Ferreira Gullar, 78 anos, teve dois filhos com esquizofrenia. Paulo, 50 anos, vive num sítio em Pernambuco há cinco. Marcos, que tinha um quadro mais leve da doença, morreu em 1992, de cirrose hepática. Recentemente, Gullar escreveu três artigos no jornal Folha de S. Paulo sobre a falta de vagas para internação psiquiátrica. A reação dos leitores chamou atenção para uma das maiores controvérsias da psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave? Gullar concedeu a seguinte entrevista a ÉPOCA em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro (confira ao final desta página um vídeo com trechos da conversa).

ÉPOCA - A lei federal 10.216, aprovada em 2001, não proíbe a internação de pacientes em hospitais psiquiátricos, mas estimulou a redução de leitos. Por que decidiu falar sobre essa lei agora?
Ferreira Gullar - Antes da aprovação da lei, soube do que consistia o primeiro projeto. Para internar uma pessoa, a família precisaria pedir autorização de um juiz. Felizmente isso foi retirado do texto final. Imagine o que é ter em casa um garoto em estado delirante - às vezes falando sem parar da noite até o dia seguinte. Os pais tentam dar remédio, tentam conversar e nada funciona. Nessa situação, o único recurso é internar. Você sente que a pessoa está saindo do controle e pode fazer uma loucura qualquer. Imagine ter de aguardar autorização de um juiz para internar um paciente numa situação de emergência. Que juiz? Aquele que nunca encontramos na justiça eficiente que temos? Imagine o desastre que isso seria.

ÉPOCA - Mas por que decidiu escrever neste momento?
Gullar - Li notícias recentes sobre o aumento de doentes mentais na população de rua. Eu já previa que isso ia acontecer diante da restrição do número de hospitais e do período de internação. Como é possível estabelecer um período de internação, determinar que um paciente psiquiátrico esteja curado dentro de determinado tempo? Quem não tem dinheiro para colocar o filho numa clínica particular fica com ele em casa até quando suportar. Muitas vezes o doente foge. Quantas vezes isso aconteceu comigo... Ele foge, vai para rua sem rumo. Ninguém sabe para onde vai.

ÉPOCA - O doente precisa ficar vigiado dentro de casa?
Gullar - Ninguém aguenta uma pessoa em estado de delírio dentro de casa. Só se ninguém trabalhar, todo mundo ficar em volta do doente. E se for uma pessoa agressiva? Tem que internar. Nenhum pai e nenhuma mãe internam seus filhos contentes da vida, achando que se livraram. Não estou dizendo que a lei foi feita para perseguir as pessoas. Não vou imaginar uma coisa dessas. Ela foi feita com boa intenção. Mas de boa intenção o inferno está cheio.

ÉPOCA - O senhor acha que a internação em hospitais psiquiátricos é o melhor tratamento?
Gullar - Ninguém é a favor de manicômio ou de encerrar uma pessoa pelo resto da vida. Isso não existe há muito tempo. Mas hoje as famílias sem recursos não têm onde pôr seus filhos. Eles vão para a rua. São mendigos loucos, mendigos delirantes. Podem agredir alguém. É imprevisível o que pode acontecer. O Ministério da Saúde tem de olhar isso. O hospital-dia é uma boa coisa. Mas para o doente ir para o hospital-dia ele tem que querer ir. Quando entra em surto, é evidente que não vai querer ir para o hospital-dia. Dizer que os doentes serão encarcerados é terrorismo.

ÉPOCA - Qual a sua opinião sobre a visão do movimento de luta antimanicomial?
Gullar - Esse pessoal não diz explicitamente, mas eu sei que para eles não existe doença mental. Por que falam em psiquiatria democrática? Existe urologia democrática? A psiquiatria democrática pressupõe que as pessoas internam seus parentes para cercear a liberdade deles. Segundo essa linha, o cara não é doido. Ele é um dissidente. Isso vem da época das drogas, da época dos Beatles, da época em que as pessoas diziam “tu tá pinel”. O que era isso? A classe média cheirava cocaína e ia parar no Pinel. Não eram doidos. Mas, levada a uma overdose, a pessoa pode entrar num estado de delírio. Esse pessoal acha que a máfia de branco cerceia a liberdade das pessoas. Pessoas que são dissidentes da sociedade burguesa. A psiquiatria democrática considera que a sociedade é que é doente e reprime aqueles que discordam dela.

ÉPOCA - Por que o sr. diz que isso é um marxismo equivocado?
Gullar - A raiz ideológica da psiquiatria democrática é a ideia de que não existe doença. A sociedade é que é culpada porque é burguesa. Quando eu estava exilado em Buenos Aires, nos anos 70, fui conversar com os médicos no hospital onde meu filho Paulo (hoje com 50 anos) havia sido internado depois de um surto. Uma médica veio conversar comigo e disse que o problema não era do meu filho. Era da família e da sociedade. Disse para ela: então me interna.

ÉPOCA - Paulo estava com você no exílio?
Gullar - Nessa época, sim. Um dia ele teve um surto e sumiu. Foi encontrado em estado totalmente delirante e foi internado. A médica chamou a mim e a minha mulher para conversar. Eu disse: coração adoece, rim adoece sem que a sociedade seja culpada de nada. O cérebro é o único órgão que não adoece por si? A sra. não acha que uma pessoa pode nascer com uma deficiência fisiológica no cérebro? O que está por trás de tudo isso é uma visão equivocada.

ÉPOCA - Quando seus filhos receberam o diagnóstico de esquizofrenia?
Gullar - Os dois começaram a falar disparates e a se comportar de maneira anormal. Isso se manifestou quando tinham 15 ou 16 anos. A doença foi precipitada pela droga. Era um período que cheirar cocaína, fumar maconha e consumir LSD estavam na moda. Surgiram anormalidades, mas eu não fiz nada. Atribuía o comportamento deles às drogas.




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O TERROR SILENCIOSO: A história de um cineasta famoso, um filho doente mental e uma tragédia


Por André Petry


“NEM SEI” - Eduardo Coutinho, cuja carreira de diretor e roteirista soma sete filmes de ficção e 22 documentários, nos quais se notabilizou por ouvir os outros com um interesse voraz: “Do que eu sou, eu não falo porque nem sei nem quero”

Quando atendeu o telefone, Pedro Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe:
— Seu irmão matou seu pai! Está tentando me matar! Me ajude, por favor, me ajude!

A notícia brutal afogou-o numa torrente de adrenalina. Atônito, Pedro pediu à mãe que repetisse o que dissera. Em prantos, ela tornou a descrever o horror e implorar socorro. Eram pouco mais de 11 da manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014. Pedro passava o fim de semana com a filha de 13 anos no seu apartamento no centro de Petrópolis. Avisou à mãe que desceria imediatamente a serra em direção ao Rio de Janeiro e desligou, mas continuava incrédulo. Afinal, seu irmão, Daniel, 41 anos, um ano mais novo, morou quase toda a vida com os pais e nunca fora violento com eles. Agarrado a esse histórico pacífico, Pedro pensou que a mãe pudesse estar delirando. Temia ligar de volta para ela e correr o risco de complicar as coisas com um telefonema inoportuno. Fez uma ligação para o cineasta Eduardo Escorel, vizinho de bairro de seus pais, e pediu-lhe que fosse até o apartamento deles conferir o que se passava. Do Leblon, Escorel tomou um táxi na mesma hora. Ao chegar ao número 826 da Avenida Lineu de Paula Machado, na Lagoa, a paisagem humana em frente ao prédio, com uma aglomeração incomum de bombeiros e policiais, já denunciava a desordem da morte. Escorel cumpriu então o penoso dever de ligar para Pedro:

— Sinto muito, Pedro. As notícias são ruins — disse ele, desviando-se do açoite das palavras exatas.
— Meu pai morreu mesmo? — foi a angustiada pergunta de Pedro.

Aos 80 anos, o consagrado cineasta Eduardo Coutinho, diretor do premiado Cabra Marcado para Morrer, fora assassinado pelo próprio filho com duas facadas na barriga, que provocaram uma hemorragia letal. Figura única no cinema nacional, ele tinha uma cabeleira branca prestes a levantar voo, uma barba de anteontem, uma magreza de faquir e um olhar suplicante, quase desesperado, atrás de um grande par de óculos. Nos últimos tempos, andava doente e frágil, embora continuasse extraordinariamente inventivo. Havia dois anos, tivera uma pneumonia. Seis meses depois, outra, ainda mais grave. Tinha um enfisema pulmonar, herança de décadas de um tabagismo feroz, e dera para andar tateando pelas paredes e caindo a toda hora, em casa e na rua.

No apartamento da Lagoa, onde morava havia quatro décadas, Coutinho vivia com o filho Daniel e a mulher, Maria das Dores, a Dorinha, dezoito anos mais jovem. Por escassez de dinheiro ou de interesse, os estragos do tempo foram se perpetuan­do no apartamento, que lentamente adquiriu um aspecto de museu decadente. Nunca fora pintado, o assoalho estava gasto, havia infiltrações nas janelas, mas o que tornava o ar irrespirável ali dentro eram as demandas alheias. Encaramujado em si mesmo, Daniel não saía do quarto, mas sua presença imperava em todo o apartamento, com a exigência de que todos fizessem um silêncio de ferro. Os pais, indagados a que hora iam sair, tinham de dar uma resposta cirúrgica: “Às 3 horas”. Quem se debulhasse em imprecisões prolixas — “Acho que lá pelas 3 horas, talvez um pouco antes...” — era bruscamente intimado a calar-se para não ferir sua sensibilidade auditiva incomum. Um dia, Coutinho, a mulher e a cunhada Rita, reunidos no escritório, riram alto de alguma coisa. Daniel enfiou a cara na porta, espiou o grupo ostensivamente e saiu. Em seguida, ouviu-se um estrondo. Ele espatifara um vaso de cristal no chão da sala. Assustada, a mãe perguntou por que fizera aquilo. Recebeu uma resposta inesquecível: o esgar de um sorriso.

Completando a aflição da vida familiar, Coutinho e a mulher vergavam sob o peso de um casamento corroído e impregnado de acusações que no passado haviam servido para ferir e agora apenas requentavam um rancor cansado. Mesmo depois das separações conjugais, durante as quais buscava abrigo na casa de um amigo, Coutinho acabava sempre voltando para casa. Afinal, era a sua casa. Mas a asfixia doméstica o empurrava para a rua. Nos dias úteis, fugia para sua sala no Centro de Criação de Imagem Popular, que ajudara a fundar nos anos 80. Não usava celular, não respondia a e-mails, não escrevia em computador. “Tenho duas Olivetti, nenhuma funciona direito”, dizia, com seu imperturbável sotaque paulistano que nem décadas de Rio de Janeiro conseguiram amansar. Passava os dias burilando novas ideias. Estava fazendo um novo filme, com o título provisório de Palavras, centrado em conversas com adolescentes. Nos fins de semana, distraía-se por horas a uma mesa na calçada da livraria Ponte de Tábuas, perto de sua casa. Era seu outro refúgio. Sentado ao ar livre, podia fumar seus cigarros intermináveis e recebia recados como se estivesse em seu escritório. Em junho de 2013, oito meses antes de sua morte, a livraria fechou, e Coutinho perdeu esse recanto de paz. Um dia, ao ser perguntado por que não ficava em casa nas horas de ócio, deu uma resposta inequívoca como um trovão: “É insuportável”.


GUILHERME GIANSANTI
“666, 666, 666”  - Daniel, durante seu depoimento à Justiça, cinco meses depois de matar o pai, agora com o cabelo um pouco crescido: no couro cabeludo, ele via sequências de “666”, símbolo da besta, o que lhe deu a certeza de que era a encarnação do próprio demônio

Estavam extraviados no passado aqueles dias inigualáveis de 1970 quando Coutinho se apaixonou por sua então futura mulher. Filmava Faustão, o drama shakespeariano, ambientado no agreste de Pernambuco. As locações ficavam em Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru. Dorinha era figurante no filme, não tinha fala, mas, no frescor de seus 19 anos, capturou a atenção de Coutinho. Ela, moça do interior, de família pobre, com estudos até a 3ª série, também se encantou com o diretor de 37 anos, com sua cabeleira negra e a barba muçulmana, que já começava a mostrar os primeiros fios brancos. Concluídas as filmagens, Coutinho voltou para casa e mandou as passagens para Dorinha juntar-se a ele no Rio. Ela foi. Em 1971, tiveram o primeiro filho, Pedro. Foi uma alegria só. Às portas dos 40 anos, Coutinho realizara o sonho de ser pai. O bebê tinha 3 meses quando Dorinha voltou a engravidar. Dessa vez sobreveio um drama que um dia ressuscitaria: a toxoplasmose.

O diagnóstico saiu logo no início da gravidez. Transmitida através das fezes do gato, a toxoplasmose é quase inofensiva para pessoas saudáveis, mas é grave para gestantes. O parasita — Toxoplasma gondii — pode infectar a placenta e o feto, causando danos neurológicos severos, como atraso no desenvolvimento mental e motor, paralisia cerebral e epilepsia. O caso de Dorinha era tão sério que o médico sugeriu que o casal discutisse a interrupção da gravidez. Com um recém-nascido no colo e 20 anos de idade, Dorinha desoriento­u-se com a notícia de uma infecção grave da qual nunca ouvira falar. Coutinho tomou o assunto para si e resolveu manter a gravidez, apesar dos riscos. Com sua brava decisão, fez nascer o filho que um dia o mataria e cujo risco de suicídio seria um de seus pesadelos mais latentes.

“Foi uma dificuldade muito grande carregar essa gravidez. Cheguei a ter medo”, disse Dorinha, no depoimento que prestou à Justiça, na dilacerante condição de testemunha de acusação contra o próprio filho. Oito meses depois do diagnóstico, com saúde aparentemente perfeita, Daniel nasceu no mesmo dia que Pedro, 3 de agosto. O drama da toxoplasmose ficou no passado, talvez por discrição, talvez por segredo. Pedro só soube da doença depois do crime, quando a mãe lhe contou pela primeira vez as circunstâncias difíceis da gestação do irmão. É provável que nem Daniel soubesse. Sua mãe, antes de começar o depoimento à Justiça, pediu que Daniel, algemado no banco dos réus, fosse retirado da sala. Com a impaciência dos burocratas, o juiz Fábio Uchôa indagou por que Dorinha não queria “depor na frente do acusado”. Desprotegida na amplidão do tribunal, ela encolheu os ombros e pendurou uma reticência num fiapo de voz trêmula: “É muito difícil para mim falar de um filho…” Daniel foi retirado.

Em circunstâncias felizes, a coincidência do nascimento no mesmo dia pode sublinhar o afeto entre irmãos, presenteando-os com mais um laço fraternal. No caso de Pedro e Daniel, só ajudou a condimentar uma hostilidade crescente e mútua. Na infância, tudo funcionava como uma sinfonia. Os meninos comemoravam o aniversário numa única festa, estudavam na mesma escola, o prestigiado Colégio Andrews, eram bons alunos e frequentavam o mesmo clube, o Piraquê, pertinho de casa. No entanto, eram o oposto em tudo. Nas recordações da mãe, Pedro era carinhoso, cordato, responsável. “Ele gostava de brincar comigo, pedia meu colo”, diz. Daniel era descuidado, meio agressivo, imprevisível. “A gente nunca sabia como ele ia reagir.” Os meninos começaram a brigar. No início, eram brigas infantis. Com o tempo, chegaram aos socos e pontapés, para desespero da mãe, que implorava por calma, mas carecia da força e da autoridade para impor sua ordem de paz. No aniversário de 12 e 13 anos, os garotos vestiram a camiseta do Flamengo, cantaram Parabéns, apagaram as velas, e nunca mais festejaram a data juntos. De repente, sem um desentendimento terminal, uma desavença insuperável, pararam de brigar e se afastaram. Pedro diz: “Acho que nos demos conta de que as brigas estavam ficando cada vez mais sérias. Então, simplesmente paramos de brigar e cada um foi para o seu lado”.

Os dois ainda passaram mais de dez anos dividindo o mesmo quarto e trocando só as palavras indispensáveis. No fim da adolescência, as diferenças aprofundaram o fosso entre os irmãos. Pedro acordava cedo e perturbava Daniel com os barulhos matinais. Daniel deitava-se tarde e incomodava o sono noturno do irmão. Daniel fumava, Pedro nunca acendera um cigarro. Daniel não trabalhava, começara a beber e envolver-se com drogas, primeiro maconha, depois cocaína. Pedro tinha começado a trabalhar cedo, nunca consumira drogas nem era de beber. Daniel passara a levar a namorada para casa, trancava-se no quarto com ela e impedia Pedro de entrar. Com o salário de assessor do Ministério Público Federal, seu primeiro emprego, Pedro comprou sua paz pagando ele mesmo uma reforma das dependências de empregada, onde Daniel e a garota passaram a ter a privacidade desejada sem desalojá-lo.

Coutinho testemunhou o afastamento dos filhos com olhos distantes. Na época, vivia o auge de Cabra Marcado para Morrer, lançado em 1984. O filme tornou-se um marco na história do cinema documental do Brasil e arrebatou doze prêmios numa luminosa trajetória no exterior. Com o sucesso, Coutinho ganhou impulso para alçar um voo ambicioso. Pediu demissão do Globo Repórter, da Rede Globo, onde trabalhava havia dez anos, e apostou na carreira de cineasta. As constantes viagens internacionais e a participação no júri de festivais de cinema afastavam-no do cotidiano familiar. Dorinha encarregava-se dos meninos, trovejava seu ciúme diante das longas ausências do marido e nunca lhe perdoou a renúncia à estabilidade financeira de um emprego na Globo, cobrança que manteve em carne viva.

A aposta de Coutinho não rendera o dinheiro esperado, mas não lhe faltava trabalho. Quando recebia algum pagamento, anunciava à família: “Temos dinheiro para viver mais quatro meses”. Em vez de trazer alívio, o aviso atiçava a insegurança financeira de Dorinha e acionava a cachoeira de lamentações. Coutinho estava percorrendo um caminho único no cinema nacional. No começo, carecia de coragem para enfrentar a grandeza de Cabra, e escapava de si mesmo fazendo o que ele próprio chamou de “filmezinhos”, até que, com o tempo, encontrou sua identidade no cinema, consolidando uma carreira de diretor e roteirista que chegou ao fim com sete filmes de ficção, 22 documentários, incontáveis prêmios e uma homenagem póstuma na festa do Oscar de 2014, quando seu nome foi incluído na lista das celebridades falecidas no ano — logo ele que detestava a autopromoção e as futilidades da publicidade. Com irresistível humor ranzinza, abatia no voo qualquer ameaça de o tratarem como “sumidade” do cinema.

Em 1998, quando Coutinho começava as pesquisas para filmar Santo Forte, documentário que levou uma braçada de prêmios e marcou seu reencontro com a consagração, Pedro deixou a casa dos pais. Tinha 26 anos. Ganhara um posto de promotor de Justiça na cidadezinha de Sapucaia, a 150 quilômetros do Rio, na divisa com Minas Gerais, onde conheceu Fernanda, sua primeira mulher e mãe de sua filha. O afastamento físico entre ele e Daniel, somado ao passar do tempo, essa combinação que recompõe tantas relações familiares moídas no convívio diário, operou o milagre inverso: separou os irmãos para sempre. Já faz trinta anos que se tratam com a frieza dos estranhos. “Não existe afeto entre nós”, diz Pedro. Quando fala do irmão, ele conjuga o verbo no passado. Até hoje, não o visitou no manicômio judicial de Bangu, onde Daniel está preso à espera de julgamento. “Não me sinto preparado para visitá-lo.”

Na adolescência, Daniel não era um líder nem o terror da vizinhança ou das meninas, mas era um pouco de tudo isso. Tinha alguma força física, o impulso natural para aventuras e uma estampa, corrigida por uma plástica no nariz, que atraía as garotas, formando um conjunto de atributos que se delatavam no apelido que ganhou: Dani Boy. “Nessa época, acho que Daniel era feliz”, diz Pedro. Do fim da adolescência em diante, algo esquisito começou a acontecer, e Daniel passou a ser cada vez menos Dani Boy. Por volta dos 18 anos, sua turma do Clube Piraquê entrou numa pancadaria com um grupo rival. Deu polícia, os pais foram chamados, e Coutinho tirou o filho do clube para mantê-lo longe de confusões. O círculo social de Daniel estreitou-se. Mais tarde, num vendaval de fatalidades, perdeu três amigos em seis meses. Um morreu em razão de um defeito congênito no coração. Outro, num acidente de carro. O terceiro foi assassinado numa disputa por drogas. Na época, sacudido pela sucessão de mortes, Daniel dizia: “Não quero mais ter amigos”. Sua vida social ficou ainda mais reduzida.

Na faculdade de comunicação social, começou a ter problemas acadêmicos, ele que sempre fora um bom aluno. Levou seis anos para concluir o curso de jornalismo. Não teve amigos nem namoradas. Formado, quis trabalhar nos filmes do pai, pelos quais nunca se interessara antes. Participou de Babilônia 2000, no Morro do Chapéu Mangueira, onde Coutinho colocou cinco equipes de filmagem na virada de 31 de dezembro de 1999. Não deu certo. Daniel era relapso, distraía-se demais, desagregava a equipe. O pai decidiu que não podia mantê-lo. Daniel tentou ainda trabalhar como assessor do então candidato a deputado estadual Roberto Dinamite, o ex-craque do Vasco. Também não funcionou, e encerrou-se aí sua última conexão social.

Em 2006, cansado das discussões domésticas com Daniel, Coutinho mandou-o para a casa da família em Mauá, a 65 quilômetros do Rio. “Eduardo não queria mais ficar no mesmo ambiente que ele”, disse Rita, irmã de Dorinha, no seu depoimento à polícia. Segundo ela, os parentes achavam que a impertinência e o ócio de Daniel eram “coisas de garoto mimado”. No início, Daniel sentiu-se bem em Mauá. Depois, desenvolveu um medo de ficar sozinho. Em menos de dois anos, voltou para a casa dos pais no Rio, encarcerou-se nas próprias sombras no quarto de empregada e nunca mais soube o que era vida social. Atormentada com o isolamento do filho, Dorinha culpava o marido por não lhe dar um emprego. A essa altura, já era visível que havia algo mais complicado do que um “garoto mimado”. Daniel tinha 34 anos. Coutinho não conseguia abrir os olhos da mulher. “Ele não tem condições de trabalhar”, dizia. “Ele precisa se tratar.” Mas ninguém sabia do quê.

Em casa, o ambiente se deteriorava num ar saturado de tensão. Coutinho tinha medo de que o filho, por qualquer razão, se suicidasse de repente. Daniel mal saía do quarto. Lia cinco, seis livros ao mesmo tempo, um pedaço de cada um. Deitava-se cedíssimo, por volta das 18 horas, e às 5 da manhã já estava acordado. Temia ser internado, ainda que ninguém soubesse se era uma medida necessária ou recomendável, e sempre pedia ao pai que não o mandasse para um hospital. Nos últimos tempos, Dorinha vivia um inferno particular. Protegia Daniel como uma leoa, como fez a vida toda, mas criou um medo do próprio filho, dentro da própria casa. Na definição cortante de Pedro, a rotina no apartamento “era um terror silencioso”.

A notícia de que Daniel era pacífico talvez esconda uma realidade mais áspera. Em seu depoimento à polícia, quatro dias depois do crime, Rita, que sempre visitava Dorinha, disse que por três vezes desconfiou de que Daniel a tivesse agredido. Nessas ocasiões, Rita encontrou Dorinha “chorando e com hematomas”, mas ela sempre negava ter sido atacada pelo filho. Rita suspeita que a irmã ocultava as agressões para proteger Daniel. Pelo menos uma vez, Rita tratou de sua desconfiança com Coutinho. Ele ficou sem saber o que fazer. Achava que, se Daniel fosse internado, poderia ficar pior do que estava. Além do mais, ele “ficaria com muita raiva de seus pais”. Tragicamente, optou-se por deixar as coisas como estavam.

Os últimos dias foram particularmente angustiantes. Daniel pediu ao pai que levasse uma prostituta para casa, para aliviá-lo das urgências agravadas pelo seu longo isolamento. Uma ou duas semanas antes do crime, disse à mãe que queria se matar. Assustada com a confidência do suicídio, a mãe fez o que pôde para demovê-lo da ideia. Alegou que sua presença era fundamental para ajudá-la a cuidar de Coutinho, cuja saúde vinha fraquejando. Numa lógica delirante, Daniel concluiu, como ele próprio contou mais tarde, que a melhor forma de cuidar dos pais era matá-­los antes de matar a si mesmo. Era intolerável viver como vivia. Dormia com uma faca ao seu lado para defender-se de agressões imaginárias no meio da noite. Ouvia vozes que lhe ordenavam o suicídio. Tinha certeza de que era a encarnação do demônio, e essa condição especial provocava inveja e rancor “das vozes”.


OITO MESES - O túmulo de Coutinho, no Cemitério São João Batista, e o laudo psiquiátrico com a informação de que Daniel tem esquizofrenia. O diagnóstico saiu oito meses depois do crime

Na véspera do crime, Daniel passou o dia “fumando, bebendo água e falando sozinho”, segundo contou à polícia. Estranhamente, esse depoimento jamais chegou aos autos do processo. Foi gravado em vídeo em 6 de fevereiro, quatro dias depois do crime. Tem apenas dez minutos e 34 segundos de duração. Nele, Daniel responde a perguntas do delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Divisão de Homicídios, cuja imagem não aparece. Fala num ritmo mecânico, marcando o compasso com os dois dedos indicadores. Daniel não costuma usar o pronome “eu” e, de vez em quando, conjuga o verbo no pretérito mais-que-perfeito. Seu depoimento:

— Olha, lembro de pegar uma faca…
— Onde? — pergunta o delegado.
— Na cozinha.
— Quantas facas?
— Acho que uma, não, duas, uma ou duas, não lembro. Lembro que fui lá e perpetrei o ato.
— Onde?
— No quarto dos meus pais. Fui primeiro na minha mãe e depois no meu pai. Tentei perfurar o abdômen (da mãe) com a faca. Ela reagiu e correu para o corredor, e se trancou no banheiro.
— E aí?
— Meu pai acordou e lutou também, mas consegui perfurar. Uma vez perfurado pela segunda vez, ele ficou no chão…
O delegado quis saber o que Daniel dizia ao pai enquanto o atacava:
— Sempre tentava acalmá-lo e dizendo que era o melhor para ele. Que estava fazendo aquilo para o bem dele. Não era uma coisa de raiva.
Em seguida, contou que se esfaqueou duas vezes na barriga, mas não conseguiu se matar.
— Nessa altura, já me arrependera e decidi chamar a ambulância — disse ele.
Contou então que foi até o banheiro, onde sua mãe estava trancada, bateu à porta e avisou:
— Mãe, espera que vou chamar a ambulância.

Depois disso, bateu à porta do vizinho no 6º andar, segurando a barriga aberta, e pediu ajuda.

Na tarde de 2 de julho, cinco meses depois do crime, Daniel depôs na Justiça. Dessa vez, seu depoimento foi menos detalhado quanto à mecânica do assassinato e mais informativo em relação às suas razões doentias. Ele disse que acordou de manhã cedo, “em pânico” com o risco que corria e decidido a suicidar-se. Quando se viu no espelho do banheiro, de cabeça raspada, reparou que seu couro cabeludo tinha “várias sequências 666”, o símbolo da besta. A revelação deu-lhe a certeza de que ele era o próprio demônio. O juiz Fábio Uchôa quis saber se Daniel ainda tinha as sequências gravadas na cabeça. “Claro”, respondeu ele, com uma vivacidade prestativa. “Gostaria muito de mostrar para o senhor.” O juiz dispensou a oferta. Daniel voltou a pedir para exibi-las. O juiz voltou a dispensá-la. Por fim, Daniel lamentou não ter raspado os cabelos antes do depoimento, de modo que os números diabólicos pudessem ser vistos. “Porque é impressionante mesmo”, disse ao juiz. No final, fez um adendo: “Quem entrou no quarto dos meus pais acreditava que era satanás”. Seu depoimento durou menos de catorze minutos.

Não se sabe qual era o estado mental de Daniel dez ou cinco anos antes nem se os sintomas do seu transtorno eram muito ou pouco evidentes. No dia 7 de outubro, porém, oito meses depois do crime, quando o conceituado psiquiatra Joel Birman o examinou no manicômio judicial de Bangu, a pedido da defesa de Daniel, seu quadro era alarmante. Birman espantou-se que um caso tão grave nunca tivesse recebido tratamento, como se pode ver num trecho de seu laudo, reproduzido na página ao lado. De acordo com seu diagnóstico, Daniel tem esquizofrenia paranoide, possivelmente desde o início da idade adulta, período em que começou a afastar-se dos amigos. O termo “esquizofrenia” — de origem grega: skhizein (dividir) e phren (mente) — só surgiu na primeira década do século XX, criado pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler. É um distúrbio esmagador que faz o paciente ouvir vozes e sentir-se perseguido, alucinações que Daniel nunca relatara à família. É possível que esses delírios tenham se agravado só recentemente. O diagnóstico ressuscitou a memória da toxoplasmose que a mãe teve na gravidez de Daniel. Estudos recentes indicam que casos agudos de infecção pelo Toxoplasma gondii podem provocar os sintomas psicóticos da esquizofrenia. O caso de Dorinha era agudo.

O parricídio — crime de quem mata pai ou mãe, ou outro parente próximo, como irmão, avô, tio, neto — é um desafio às nossas noções de justiça, castigo, perdão. Daniel deve ir preso? Deve ser inocentado? Deve ser tratado? Interdito em todas as culturas, modernas ou antigas, o parricídio viola, de uma só tacada, dois mandamentos bíblicos: “Não matarás” e “Honrarás pai e mãe”. É um tema tão fascinante que está na mitologia e nas grandes obras da literatura universal. Em Édipo Rei, peça encenada pela primeira vez mais de quatro séculos antes da era cristã, Sófocles cria um parricida enganado e arrependido. Em Hamlet, Shakespeare dramatiza a ambição desmedida que leva um irmão a matar o outro para usurpar-lhe o trono e a mulher, desencadeando a fúria do órfão que quer vingar a morte do pai. No magnífico Os Irmãos Karamazov, Dostoievski narra o assassinato do pai pelo seu primogênito. Para Sêneca, o parricídio é “um crime que faz qualquer ser humano tremer de horror”.

Felizmente, os parricídios são raros. Nos Estados Unidos, um levantamento que reuniu dados de 1976 a 2007 mostra que compreendem menos de 1% dos homicídios em que se conhece a relação de parentesco entre assassino e vítima. No Brasil, quatro pesquisadoras — Paula Gomide, Ana Maria Teche, Simone Maiorki e Singra Cardoso — recolheram reportagens da imprensa e dados da internet e encontraram 246 casos entre 2005 e 2011. Com esses dados à mão, traçaram o perfil do parricida brasileiro: é homem, age sozinho, usa arma branca e comete o crime em casa, exatamente como Daniel. Com uma diferença: a larguíssima maioria dos parricidas são filhos que sofreram abusos severos — psicológicos, físicos, morais, sexuais — na infância ou na adolescência. Respondem por algo como 90% dos casos. Os parricidas com distúrbio mental, como Daniel, são uma minoria quase invisível, dado que surpreende quem associa doença mental à violência. (Cerca de 84% dos portadores de transtornos psíquicos passam a vida sem cometer nenhum ato violento.)


A OBRA - Depois do imenso sucesso de Cabra (1984), Coutinho só fez “filmezinhos”, até redescobrir-se com Boca do Lixo (1992). Voltou à glória com Santo Forte (1999) e, em menor escala, com Babilônia 2000. Ao sucesso de Edifício Master (2002) seguiu-se O Fim e o Princípio (2005). No brilhante Moscou (2009), filmou ensaios de uma peça, e mirou sua câmera em As Canções (2011) em anônimos que cantam — sem motivo nem causa

A presença da esquizofrenia, no entanto, levanta uma dúvida amarga sobre o infortúnio dos Coutinho: terá sido uma tragédia desnecessária? A psiquiatria informa que, sob tratamento e medicação adequada, Daniel, muito provavelmente, não teria surtado a ponto de esfaquear os pais, e tudo indica que na manhã do 2 de fevereiro de 2014 ele tenha tido o primeiro surto psicótico de sua vida. O poeta Ferreira Gullar, ele próprio pai de um esquizofrênico, escreveu um artigo para o jornal Folha de S.Paulo duas semanas depois do crime e, embora amigo de Coutinho, não se furtou a prolatar uma sentença peremptória: “Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que se o tivessem feito aquela tragédia dificilmente teria ocorrido”. O diagnóstico de Gullar doeu nos familiares porque, àquela altura, ninguém sabia, nem a família, se Daniel tinha mesmo uma patologia psíquica.

Nem Pedro sabe dizer por que Daniel nunca foi diagnosticado e tratado. “Esse era um assunto sempre doloroso na família”, diz. A tolerância dos Coutinho pode ter sido resultado daquela esperança ingênua de que tudo melhore sem o temporal de verdades e dores que costuma desabar quando se aborda um problema de frente. Pode ter sido produto daquela percepção tão peculiar que nos faz enxergar com nitidez o que se passa com a família dos outros, mas nos cega diante do que acontece em nossa própria. Pode ter sido vergonha ou preconceito, comuns em casas ricas, remediadas e pobres, em razão do estigma secular da doença mental. O fato é que os pais de Daniel tentaram três vezes a ajuda de um psiquiatra, em distintas fases de sua vida. Mas o rapaz logo deixava de ir às consultas e, assim, nunca teve um diagnóstico claro nem fez um tratamento continuado.

Com amigos, Coutinho tampouco tratava do assunto. A família toda era tão discreta que parecia esconder-se de si mesma. João Roberto do Nascimento, funcionário do edifício da Lagoa desde 2001, diz que alguns moradores nem sabiam que o famoso cineasta vivia no mesmo prédio. A vizinha do 6º andar, Ana Beatriz da Silva Aguiar, conta que viu Daniel só duas vezes em trinta anos: quando ele era criança e quando bateu à sua porta para pedir ajuda, com as vísceras pulando para fora da barriga, depois de ter matado o pai. Como cineasta, Coutinho tinha o coração escancarado para ouvir a história de vida dos outros. Tinha um interesse voraz pelas pessoas anônimas, geralmente pobres, das quais arrancava confissões espantosas em seus filmes. Por isso, alguém o chamou de “psicólogo das lentes”. Como pai e marido, era fechado feito uma ostra, nunca dividia com ninguém as intimidades da vida familiar. Numa entrevista em 2012, disse: “Do que eu sou, eu não falo porque nem sei nem quero”. Até amigos se surpreenderam ao descobrir, depois do crime, que Coutinho tinha um filho com um distúrbio mental, inclusive Ferreira Gullar. Seus filmes, apenas seus filmes, eram a forma de lidar com as próprias dores e desesperanças, com seu fascínio e seu horror pela miudeza do cotidiano.

O CRIADOR - No destaque, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939), criador do termo “esquizofrenia”, num congresso em Weimar, em 1911: a doença de delírios e alucinações

Era uma esplêndida manhã de domingo quando Daniel entrou no quarto dos pais com uma ou duas facas na mão. Primeiro, dirigiu-se à mãe. Ela dormia em um colchonete no chão. De cócoras, pegou-a por trás. Segurou-a pelo ombro com a mão esquerda. Com a direita, cravou-lhe a primeira facada, na altura do seio esquerdo. A mãe começou a gritar, acordando o marido deitado na cama. Ela ­desvencilho­u- se do filho, fugiu para a cozinha. Na fuga, caiu. O filho desferiu-lhe novos golpes. Livrou-se dele outra vez, levantou-se. Correu para o interfone, caiu de novo. Queria uma chave para trancar-se em algum cômodo, alcançou o banheiro, refugiou-se ali, ensanguentada, gritando sem parar, tomada de pânico. O pai, acordado, foi atacado pelo filho. Lutou quanto pôde. Fugiu do quarto. Tentou pegar o interfone, foi impedido. Levou duas facadas na barriga, caiu, o corpo inerte, debruçado sobre uma poça de sangue no chão da sala. O filho fincou uma faca na própria barriga. Nada. Fincou de novo. Nada. Além da dor dos golpes, não sentia nada. Subitamente, tendo sobrevivido ao próprio ataque, entendeu que as vozes haviam lhe traído. Tinham lhe dito que conseguiria se matar com uma facada na barriga. Desferiu duas, e não obteve o resultado prometido. Enganado pelas vozes, com as quais mantinha “uma intensa comunicação mental”, Daniel de Oliveira Coutinho, em surto psicótico da esquizofrenia paranoide, atribuiu o fracasso do suicídio a uma possível “proteção demoníaca” e descobriu então, traído e perplexo, que era mais difícil morrer do que continuar vivendo.

“Quando me olho no espelho, vejo três cicatrizes”, diz Dorinha, que foi internada em dois hospitais. “Tem uma grande, que deve ter pego perto de cinquenta pontos.” Coutinho, tudo indica, morreu pouco depois de ser atacado. Na tarde de 2 de fevereiro, o perito Francisco Eduardo Silva fez o exame cadavérico. Encontrou ferimentos no tórax, no abdômen, na mão direita e “grande quantidade de sangue na cavidade abdominal”. Em 26 minutos, encerrou o trabalho e concluiu que a morte de Coutinho fora causada pela “secção quase completa” da aorta abdominal, a principal artéria do abdômen, que provocou a hemorragia fatal.

Pedro, depois de receber o telefonema desesperado da mãe em que pedia socorro trancada no banheiro, desceu a Serra de Petrópolis em seu Renault Sandero. Entregou o volante à namorada, Érika, uma ruiva doze anos mais jovem, e viajou a bordo de uma esperança vã: que seu pai tivesse sobrevivido aos ataques, tal como sua mãe. Uma hora depois, ao chegar ao edifício dos pais na Lagoa, viu amigos ali reunidos com as expressões inconfundíveis do luto. Desceu do carro, olhou para a portaria no exato momento em que os bombeiros retiravam do prédio um corpo dentro de um saco de plástico preto. Era o cadáver de seu pai. Com uma voz pequena, Pedro rememora: “Fiquei olhando eles colocarem o corpo no rabecão”.

Coutinho está enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Dorinha, com a ajuda da irmã Rita, tenta carregar uma dor maior que ela. A trágica viuvez e a prisão do filho destruíram seu mundo. Faz tratamento psicológico, toma remédios. Recuperou-se bem das facadas, mas seu estado depressivo é indomável. Numa de suas raras saídas, encontrou por acaso uma velha amiga no Shopping da Gávea. Ficou assustada, o corpo inteiro tremia. Pensou em voltar para Pernambuco, sua terra natal. Também pensou em mudar-se para a casa de Mauá, mas continua no apartamento da Lagoa. Traumatizada, tem medo de visitar Daniel sozinha. Sempre leva Rita. As visitas lhe fazem mal. Volta para casa arrasada. Pedro, que tem a mesma fisionomia e a mesma fala atropelada do pai, enfrenta tudo com resignação comovente. Luta em silêncio para não deixar a tragédia definir sua vida. “Talvez uma hora eu consiga visitar Daniel”, disse ele, mais recomposto, agora que a tragédia fez um ano. Cuida da mãe, da filha Maria Eduarda, hoje com 14 anos, e da enteada Isabelle, de 18, que o tem como pai e mora com ele.

Daniel não dá entrevistas, não recebe amigos da família e, mesmo quando a mãe vai visitá-lo, fica impaciente depois dos primeiros minutos de conversa, ansioso para acabar logo com aquilo. Em dezembro, pediu ao seu advogado, João Bernardo Kappen, 33 anos e fã da obra de Coutinho, que só tornasse a vê-lo depois do julgamento, o que pode ocorrer até março. Daniel pode ser levado ao tribunal do júri ou ser sentenciado a cumprir pena de internação de um a três anos num manicômio judicial. Ele se arrepende do que fez, mas mantém a certeza de que agiu pelo bem dos pais. Na sua percepção, as sequências de 666 ainda estão lá, cicatrizadas na cabeça, mas agora Daniel já não acredita que seja a encarnação viva do demônio. A Kappen, ele fez um apelo incomum na boca de um preso: pediu ao advogado que não tentasse libertá-lo. Quer ficar no manicômio de Bangu, onde está medicado e se sente bem.


CRÉDITOS
Reportagem: André Petry
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