Por André Petry
“NEM SEI” - Eduardo Coutinho,
cuja carreira de diretor e roteirista soma sete filmes de ficção e 22
documentários, nos quais se notabilizou por ouvir os outros com um interesse
voraz: “Do que eu sou, eu não falo porque nem sei nem quero”
Quando atendeu o telefone, Pedro
Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe:
— Seu irmão matou seu pai! Está
tentando me matar! Me ajude, por favor, me ajude!
A notícia brutal afogou-o numa
torrente de adrenalina. Atônito, Pedro pediu à mãe que repetisse o que dissera.
Em prantos, ela tornou a descrever o horror e implorar socorro. Eram pouco mais
de 11 da manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014. Pedro passava o fim de
semana com a filha de 13 anos no seu apartamento no centro de Petrópolis.
Avisou à mãe que desceria imediatamente a serra em direção ao Rio de Janeiro e
desligou, mas continuava incrédulo. Afinal, seu irmão, Daniel, 41 anos, um ano
mais novo, morou quase toda a vida com os pais e nunca fora violento com eles.
Agarrado a esse histórico pacífico, Pedro pensou que a mãe pudesse estar
delirando. Temia ligar de volta para ela e correr o risco de complicar as
coisas com um telefonema inoportuno. Fez uma ligação para o cineasta Eduardo
Escorel, vizinho de bairro de seus pais, e pediu-lhe que fosse até o
apartamento deles conferir o que se passava. Do Leblon, Escorel tomou um táxi
na mesma hora. Ao chegar ao número 826 da Avenida Lineu de Paula Machado, na
Lagoa, a paisagem humana em frente ao prédio, com uma aglomeração incomum de
bombeiros e policiais, já denunciava a desordem da morte. Escorel cumpriu então
o penoso dever de ligar para Pedro:
— Sinto muito, Pedro. As notícias
são ruins — disse ele, desviando-se do açoite das palavras exatas.
— Meu pai morreu mesmo? — foi a
angustiada pergunta de Pedro.
Aos 80 anos, o consagrado
cineasta Eduardo Coutinho, diretor do premiado Cabra Marcado para Morrer, fora
assassinado pelo próprio filho com duas facadas na barriga, que provocaram uma
hemorragia letal. Figura única no cinema nacional, ele tinha uma cabeleira
branca prestes a levantar voo, uma barba de anteontem, uma magreza de faquir e
um olhar suplicante, quase desesperado, atrás de um grande par de óculos. Nos
últimos tempos, andava doente e frágil, embora continuasse extraordinariamente
inventivo. Havia dois anos, tivera uma pneumonia. Seis meses depois, outra,
ainda mais grave. Tinha um enfisema pulmonar, herança de décadas de um
tabagismo feroz, e dera para andar tateando pelas paredes e caindo a toda hora,
em casa e na rua.
No apartamento da Lagoa, onde
morava havia quatro décadas, Coutinho vivia com o filho Daniel e a mulher,
Maria das Dores, a Dorinha, dezoito anos mais jovem. Por escassez de dinheiro
ou de interesse, os estragos do tempo foram se perpetuando no apartamento, que
lentamente adquiriu um aspecto de museu decadente. Nunca fora pintado, o
assoalho estava gasto, havia infiltrações nas janelas, mas o que tornava o ar
irrespirável ali dentro eram as demandas alheias. Encaramujado em si mesmo,
Daniel não saía do quarto, mas sua presença imperava em todo o apartamento, com
a exigência de que todos fizessem um silêncio de ferro. Os pais, indagados a
que hora iam sair, tinham de dar uma resposta cirúrgica: “Às 3 horas”. Quem se
debulhasse em imprecisões prolixas — “Acho que lá pelas 3 horas, talvez um
pouco antes...” — era bruscamente intimado a calar-se para não ferir sua
sensibilidade auditiva incomum. Um dia, Coutinho, a mulher e a cunhada Rita,
reunidos no escritório, riram alto de alguma coisa. Daniel enfiou a cara na
porta, espiou o grupo ostensivamente e saiu. Em seguida, ouviu-se um estrondo.
Ele espatifara um vaso de cristal no chão da sala. Assustada, a mãe perguntou
por que fizera aquilo. Recebeu uma resposta inesquecível: o esgar de um
sorriso.
Completando a aflição da vida
familiar, Coutinho e a mulher vergavam sob o peso de um casamento corroído e
impregnado de acusações que no passado haviam servido para ferir e agora apenas
requentavam um rancor cansado. Mesmo depois das separações conjugais, durante
as quais buscava abrigo na casa de um amigo, Coutinho acabava sempre voltando
para casa. Afinal, era a sua casa. Mas a asfixia doméstica o empurrava para a
rua. Nos dias úteis, fugia para sua sala no Centro de Criação de Imagem
Popular, que ajudara a fundar nos anos 80. Não usava celular, não respondia a
e-mails, não escrevia em computador. “Tenho duas Olivetti, nenhuma funciona
direito”, dizia, com seu imperturbável sotaque paulistano que nem décadas de
Rio de Janeiro conseguiram amansar. Passava os dias burilando novas ideias.
Estava fazendo um novo filme, com o título provisório de Palavras, centrado em
conversas com adolescentes. Nos fins de semana, distraía-se por horas a uma
mesa na calçada da livraria Ponte de Tábuas, perto de sua casa. Era seu outro
refúgio. Sentado ao ar livre, podia fumar seus cigarros intermináveis e recebia
recados como se estivesse em seu escritório. Em junho de 2013, oito meses antes
de sua morte, a livraria fechou, e Coutinho perdeu esse recanto de paz. Um dia,
ao ser perguntado por que não ficava em casa nas horas de ócio, deu uma
resposta inequívoca como um trovão: “É insuportável”.
GUILHERME GIANSANTI
“666, 666, 666” - Daniel, durante
seu depoimento à Justiça, cinco meses depois de matar o pai, agora com o cabelo
um pouco crescido: no couro cabeludo, ele via sequências de “666”, símbolo da
besta, o que lhe deu a certeza de que era a encarnação do próprio demônio
Estavam extraviados no passado
aqueles dias inigualáveis de 1970 quando Coutinho se apaixonou por sua então
futura mulher. Filmava Faustão, o drama shakespeariano, ambientado no agreste
de Pernambuco. As locações ficavam em Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru.
Dorinha era figurante no filme, não tinha fala, mas, no frescor de seus 19
anos, capturou a atenção de Coutinho. Ela, moça do interior, de família pobre,
com estudos até a 3ª série, também se encantou com o diretor de 37 anos, com
sua cabeleira negra e a barba muçulmana, que já começava a mostrar os primeiros
fios brancos. Concluídas as filmagens, Coutinho voltou para casa e mandou as
passagens para Dorinha juntar-se a ele no Rio. Ela foi. Em 1971, tiveram o
primeiro filho, Pedro. Foi uma alegria só. Às portas dos 40 anos, Coutinho
realizara o sonho de ser pai. O bebê tinha 3 meses quando Dorinha voltou a
engravidar. Dessa vez sobreveio um drama que um dia ressuscitaria: a
toxoplasmose.
O diagnóstico saiu logo no início
da gravidez. Transmitida através das fezes do gato, a toxoplasmose é quase
inofensiva para pessoas saudáveis, mas é grave para gestantes. O parasita —
Toxoplasma gondii — pode infectar a placenta e o feto, causando danos
neurológicos severos, como atraso no desenvolvimento mental e motor, paralisia cerebral
e epilepsia. O caso de Dorinha era tão sério que o médico sugeriu que o casal
discutisse a interrupção da gravidez. Com um recém-nascido no colo e 20 anos de
idade, Dorinha desorientou-se com a notícia de uma infecção grave da qual
nunca ouvira falar. Coutinho tomou o assunto para si e resolveu manter a
gravidez, apesar dos riscos. Com sua brava decisão, fez nascer o filho que um
dia o mataria e cujo risco de suicídio seria um de seus pesadelos mais
latentes.
“Foi uma dificuldade muito grande
carregar essa gravidez. Cheguei a ter medo”, disse Dorinha, no depoimento que
prestou à Justiça, na dilacerante condição de testemunha de acusação contra o
próprio filho. Oito meses depois do diagnóstico, com saúde aparentemente
perfeita, Daniel nasceu no mesmo dia que Pedro, 3 de agosto. O drama da
toxoplasmose ficou no passado, talvez por discrição, talvez por segredo. Pedro
só soube da doença depois do crime, quando a mãe lhe contou pela primeira vez
as circunstâncias difíceis da gestação do irmão. É provável que nem Daniel
soubesse. Sua mãe, antes de começar o depoimento à Justiça, pediu que Daniel,
algemado no banco dos réus, fosse retirado da sala. Com a impaciência dos
burocratas, o juiz Fábio Uchôa indagou por que Dorinha não queria “depor na
frente do acusado”. Desprotegida na amplidão do tribunal, ela encolheu os
ombros e pendurou uma reticência num fiapo de voz trêmula: “É muito difícil
para mim falar de um filho…” Daniel foi retirado.
Em circunstâncias felizes, a
coincidência do nascimento no mesmo dia pode sublinhar o afeto entre irmãos,
presenteando-os com mais um laço fraternal. No caso de Pedro e Daniel, só
ajudou a condimentar uma hostilidade crescente e mútua. Na infância, tudo
funcionava como uma sinfonia. Os meninos comemoravam o aniversário numa única
festa, estudavam na mesma escola, o prestigiado Colégio Andrews, eram bons
alunos e frequentavam o mesmo clube, o Piraquê, pertinho de casa. No entanto,
eram o oposto em tudo. Nas recordações da mãe, Pedro era carinhoso, cordato,
responsável. “Ele gostava de brincar comigo, pedia meu colo”, diz. Daniel era
descuidado, meio agressivo, imprevisível. “A gente nunca sabia como ele ia
reagir.” Os meninos começaram a brigar. No início, eram brigas infantis. Com o
tempo, chegaram aos socos e pontapés, para desespero da mãe, que implorava por
calma, mas carecia da força e da autoridade para impor sua ordem de paz. No
aniversário de 12 e 13 anos, os garotos vestiram a camiseta do Flamengo,
cantaram Parabéns, apagaram as velas, e nunca mais festejaram a data juntos. De
repente, sem um desentendimento terminal, uma desavença insuperável, pararam de
brigar e se afastaram. Pedro diz: “Acho que nos demos conta de que as brigas
estavam ficando cada vez mais sérias. Então, simplesmente paramos de brigar e
cada um foi para o seu lado”.
Os dois ainda passaram mais de
dez anos dividindo o mesmo quarto e trocando só as palavras indispensáveis. No
fim da adolescência, as diferenças aprofundaram o fosso entre os irmãos. Pedro
acordava cedo e perturbava Daniel com os barulhos matinais. Daniel deitava-se
tarde e incomodava o sono noturno do irmão. Daniel fumava, Pedro nunca acendera
um cigarro. Daniel não trabalhava, começara a beber e envolver-se com drogas,
primeiro maconha, depois cocaína. Pedro tinha começado a trabalhar cedo, nunca
consumira drogas nem era de beber. Daniel passara a levar a namorada para casa,
trancava-se no quarto com ela e impedia Pedro de entrar. Com o salário de
assessor do Ministério Público Federal, seu primeiro emprego, Pedro comprou sua
paz pagando ele mesmo uma reforma das dependências de empregada, onde Daniel e
a garota passaram a ter a privacidade desejada sem desalojá-lo.
Coutinho testemunhou o
afastamento dos filhos com olhos distantes. Na época, vivia o auge de Cabra
Marcado para Morrer, lançado em 1984. O filme tornou-se um marco na história do
cinema documental do Brasil e arrebatou doze prêmios numa luminosa trajetória
no exterior. Com o sucesso, Coutinho ganhou impulso para alçar um voo
ambicioso. Pediu demissão do Globo Repórter, da Rede Globo, onde trabalhava
havia dez anos, e apostou na carreira de cineasta. As constantes viagens
internacionais e a participação no júri de festivais de cinema afastavam-no do
cotidiano familiar. Dorinha encarregava-se dos meninos, trovejava seu ciúme
diante das longas ausências do marido e nunca lhe perdoou a renúncia à
estabilidade financeira de um emprego na Globo, cobrança que manteve em carne
viva.
A aposta de Coutinho não rendera
o dinheiro esperado, mas não lhe faltava trabalho. Quando recebia algum pagamento,
anunciava à família: “Temos dinheiro para viver mais quatro meses”. Em vez de
trazer alívio, o aviso atiçava a insegurança financeira de Dorinha e acionava a
cachoeira de lamentações. Coutinho estava percorrendo um caminho único no
cinema nacional. No começo, carecia de coragem para enfrentar a grandeza de
Cabra, e escapava de si mesmo fazendo o que ele próprio chamou de
“filmezinhos”, até que, com o tempo, encontrou sua identidade no cinema,
consolidando uma carreira de diretor e roteirista que chegou ao fim com sete
filmes de ficção, 22 documentários, incontáveis prêmios e uma homenagem póstuma
na festa do Oscar de 2014, quando seu nome foi incluído na lista das
celebridades falecidas no ano — logo ele que detestava a autopromoção e as
futilidades da publicidade. Com irresistível humor ranzinza, abatia no voo
qualquer ameaça de o tratarem como “sumidade” do cinema.
Em 1998, quando Coutinho começava
as pesquisas para filmar Santo Forte, documentário que levou uma braçada de
prêmios e marcou seu reencontro com a consagração, Pedro deixou a casa dos
pais. Tinha 26 anos. Ganhara um posto de promotor de Justiça na cidadezinha de
Sapucaia, a 150 quilômetros do Rio, na divisa com Minas Gerais, onde conheceu
Fernanda, sua primeira mulher e mãe de sua filha. O afastamento físico entre
ele e Daniel, somado ao passar do tempo, essa combinação que recompõe tantas
relações familiares moídas no convívio diário, operou o milagre inverso:
separou os irmãos para sempre. Já faz trinta anos que se tratam com a frieza dos
estranhos. “Não existe afeto entre nós”, diz Pedro. Quando fala do irmão, ele
conjuga o verbo no passado. Até hoje, não o visitou no manicômio judicial de
Bangu, onde Daniel está preso à espera de julgamento. “Não me sinto preparado
para visitá-lo.”
Na adolescência, Daniel não era
um líder nem o terror da vizinhança ou das meninas, mas era um pouco de tudo
isso. Tinha alguma força física, o impulso natural para aventuras e uma
estampa, corrigida por uma plástica no nariz, que atraía as garotas, formando
um conjunto de atributos que se delatavam no apelido que ganhou: Dani Boy.
“Nessa época, acho que Daniel era feliz”, diz Pedro. Do fim da adolescência em
diante, algo esquisito começou a acontecer, e Daniel passou a ser cada vez
menos Dani Boy. Por volta dos 18 anos, sua turma do Clube Piraquê entrou numa
pancadaria com um grupo rival. Deu polícia, os pais foram chamados, e Coutinho
tirou o filho do clube para mantê-lo longe de confusões. O círculo social de
Daniel estreitou-se. Mais tarde, num vendaval de fatalidades, perdeu três
amigos em seis meses. Um morreu em razão de um defeito congênito no coração.
Outro, num acidente de carro. O terceiro foi assassinado numa disputa por
drogas. Na época, sacudido pela sucessão de mortes, Daniel dizia: “Não quero mais
ter amigos”. Sua vida social ficou ainda mais reduzida.
Na faculdade de comunicação
social, começou a ter problemas acadêmicos, ele que sempre fora um bom aluno.
Levou seis anos para concluir o curso de jornalismo. Não teve amigos nem
namoradas. Formado, quis trabalhar nos filmes do pai, pelos quais nunca se
interessara antes. Participou de Babilônia 2000, no Morro do Chapéu Mangueira,
onde Coutinho colocou cinco equipes de filmagem na virada de 31 de dezembro de
1999. Não deu certo. Daniel era relapso, distraía-se demais, desagregava a
equipe. O pai decidiu que não podia mantê-lo. Daniel tentou ainda trabalhar
como assessor do então candidato a deputado estadual Roberto Dinamite, o
ex-craque do Vasco. Também não funcionou, e encerrou-se aí sua última conexão
social.
Em 2006, cansado das discussões
domésticas com Daniel, Coutinho mandou-o para a casa da família em Mauá, a 65
quilômetros do Rio. “Eduardo não queria mais ficar no mesmo ambiente que ele”,
disse Rita, irmã de Dorinha, no seu depoimento à polícia. Segundo ela, os
parentes achavam que a impertinência e o ócio de Daniel eram “coisas de garoto
mimado”. No início, Daniel sentiu-se bem em Mauá. Depois, desenvolveu um medo
de ficar sozinho. Em menos de dois anos, voltou para a casa dos pais no Rio,
encarcerou-se nas próprias sombras no quarto de empregada e nunca mais soube o
que era vida social. Atormentada com o isolamento do filho, Dorinha culpava o
marido por não lhe dar um emprego. A essa altura, já era visível que havia algo
mais complicado do que um “garoto mimado”. Daniel tinha 34 anos. Coutinho não
conseguia abrir os olhos da mulher. “Ele não tem condições de trabalhar”,
dizia. “Ele precisa se tratar.” Mas ninguém sabia do quê.
Em casa, o ambiente se
deteriorava num ar saturado de tensão. Coutinho tinha medo de que o filho, por
qualquer razão, se suicidasse de repente. Daniel mal saía do quarto. Lia cinco,
seis livros ao mesmo tempo, um pedaço de cada um. Deitava-se cedíssimo, por
volta das 18 horas, e às 5 da manhã já estava acordado. Temia ser internado,
ainda que ninguém soubesse se era uma medida necessária ou recomendável, e
sempre pedia ao pai que não o mandasse para um hospital. Nos últimos tempos,
Dorinha vivia um inferno particular. Protegia Daniel como uma leoa, como fez a
vida toda, mas criou um medo do próprio filho, dentro da própria casa. Na
definição cortante de Pedro, a rotina no apartamento “era um terror
silencioso”.
A notícia de que Daniel era
pacífico talvez esconda uma realidade mais áspera. Em seu depoimento à polícia,
quatro dias depois do crime, Rita, que sempre visitava Dorinha, disse que por
três vezes desconfiou de que Daniel a tivesse agredido. Nessas ocasiões, Rita
encontrou Dorinha “chorando e com hematomas”, mas ela sempre negava ter sido
atacada pelo filho. Rita suspeita que a irmã ocultava as agressões para
proteger Daniel. Pelo menos uma vez, Rita tratou de sua desconfiança com
Coutinho. Ele ficou sem saber o que fazer. Achava que, se Daniel fosse
internado, poderia ficar pior do que estava. Além do mais, ele “ficaria com
muita raiva de seus pais”. Tragicamente, optou-se por deixar as coisas como
estavam.
Os últimos dias foram
particularmente angustiantes. Daniel pediu ao pai que levasse uma prostituta
para casa, para aliviá-lo das urgências agravadas pelo seu longo isolamento.
Uma ou duas semanas antes do crime, disse à mãe que queria se matar. Assustada
com a confidência do suicídio, a mãe fez o que pôde para demovê-lo da ideia.
Alegou que sua presença era fundamental para ajudá-la a cuidar de Coutinho,
cuja saúde vinha fraquejando. Numa lógica delirante, Daniel concluiu, como ele
próprio contou mais tarde, que a melhor forma de cuidar dos pais era matá-los
antes de matar a si mesmo. Era intolerável viver como vivia. Dormia com uma
faca ao seu lado para defender-se de agressões imaginárias no meio da noite.
Ouvia vozes que lhe ordenavam o suicídio. Tinha certeza de que era a encarnação
do demônio, e essa condição especial provocava inveja e rancor “das vozes”.
OITO MESES - O túmulo de
Coutinho, no Cemitério São João Batista, e o laudo psiquiátrico com a
informação de que Daniel tem esquizofrenia. O diagnóstico saiu oito meses
depois do crime
Na véspera do crime, Daniel
passou o dia “fumando, bebendo água e falando sozinho”, segundo contou à
polícia. Estranhamente, esse depoimento jamais chegou aos autos do processo.
Foi gravado em vídeo em 6 de fevereiro, quatro dias depois do crime. Tem apenas
dez minutos e 34 segundos de duração. Nele, Daniel responde a perguntas do
delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Divisão de Homicídios, cuja imagem não
aparece. Fala num ritmo mecânico, marcando o compasso com os dois dedos
indicadores. Daniel não costuma usar o pronome “eu” e, de vez em quando,
conjuga o verbo no pretérito mais-que-perfeito. Seu depoimento:
— Olha, lembro de pegar uma faca…
— Onde? — pergunta o delegado.
— Na cozinha.
— Quantas facas?
— Acho que uma, não, duas, uma ou
duas, não lembro. Lembro que fui lá e perpetrei o ato.
— Onde?
— No quarto dos meus pais. Fui
primeiro na minha mãe e depois no meu pai. Tentei perfurar o abdômen (da mãe)
com a faca. Ela reagiu e correu para o corredor, e se trancou no banheiro.
— E aí?
— Meu pai acordou e lutou também,
mas consegui perfurar. Uma vez perfurado pela segunda vez, ele ficou no chão…
O delegado quis saber o que
Daniel dizia ao pai enquanto o atacava:
— Sempre tentava acalmá-lo e
dizendo que era o melhor para ele. Que estava fazendo aquilo para o bem dele.
Não era uma coisa de raiva.
Em seguida, contou que se
esfaqueou duas vezes na barriga, mas não conseguiu se matar.
— Nessa altura, já me arrependera
e decidi chamar a ambulância — disse ele.
Contou então que foi até o
banheiro, onde sua mãe estava trancada, bateu à porta e avisou:
— Mãe, espera que vou chamar a
ambulância.
Depois disso, bateu à porta do vizinho
no 6º andar, segurando a barriga aberta, e pediu ajuda.
Na tarde de 2 de julho, cinco
meses depois do crime, Daniel depôs na Justiça. Dessa vez, seu depoimento foi
menos detalhado quanto à mecânica do assassinato e mais informativo em relação
às suas razões doentias. Ele disse que acordou de manhã cedo, “em pânico” com o
risco que corria e decidido a suicidar-se. Quando se viu no espelho do
banheiro, de cabeça raspada, reparou que seu couro cabeludo tinha “várias
sequências 666”, o símbolo da besta. A revelação deu-lhe a certeza de que ele
era o próprio demônio. O juiz Fábio Uchôa quis saber se Daniel ainda tinha as
sequências gravadas na cabeça. “Claro”, respondeu ele, com uma vivacidade
prestativa. “Gostaria muito de mostrar para o senhor.” O juiz dispensou a
oferta. Daniel voltou a pedir para exibi-las. O juiz voltou a dispensá-la. Por
fim, Daniel lamentou não ter raspado os cabelos antes do depoimento, de modo
que os números diabólicos pudessem ser vistos. “Porque é impressionante mesmo”,
disse ao juiz. No final, fez um adendo: “Quem entrou no quarto dos meus pais
acreditava que era satanás”. Seu depoimento durou menos de catorze minutos.
Não se sabe qual era o estado
mental de Daniel dez ou cinco anos antes nem se os sintomas do seu transtorno
eram muito ou pouco evidentes. No dia 7 de outubro, porém, oito meses depois do
crime, quando o conceituado psiquiatra Joel Birman o examinou no manicômio
judicial de Bangu, a pedido da defesa de Daniel, seu quadro era alarmante.
Birman espantou-se que um caso tão grave nunca tivesse recebido tratamento,
como se pode ver num trecho de seu laudo, reproduzido na página ao lado. De
acordo com seu diagnóstico, Daniel tem esquizofrenia paranoide, possivelmente
desde o início da idade adulta, período em que começou a afastar-se dos amigos.
O termo “esquizofrenia” — de origem grega: skhizein (dividir) e phren (mente) —
só surgiu na primeira década do século XX, criado pelo psiquiatra suíço Eugen
Bleuler. É um distúrbio esmagador que faz o paciente ouvir vozes e sentir-se
perseguido, alucinações que Daniel nunca relatara à família. É possível que
esses delírios tenham se agravado só recentemente. O diagnóstico ressuscitou a
memória da toxoplasmose que a mãe teve na gravidez de Daniel. Estudos recentes
indicam que casos agudos de infecção pelo Toxoplasma gondii podem provocar os
sintomas psicóticos da esquizofrenia. O caso de Dorinha era agudo.
O parricídio — crime de quem mata
pai ou mãe, ou outro parente próximo, como irmão, avô, tio, neto — é um desafio
às nossas noções de justiça, castigo, perdão. Daniel deve ir preso? Deve ser
inocentado? Deve ser tratado? Interdito em todas as culturas, modernas ou
antigas, o parricídio viola, de uma só tacada, dois mandamentos bíblicos: “Não
matarás” e “Honrarás pai e mãe”. É um tema tão fascinante que está na mitologia
e nas grandes obras da literatura universal. Em Édipo Rei, peça encenada pela
primeira vez mais de quatro séculos antes da era cristã, Sófocles cria um
parricida enganado e arrependido. Em Hamlet, Shakespeare dramatiza a ambição
desmedida que leva um irmão a matar o outro para usurpar-lhe o trono e a
mulher, desencadeando a fúria do órfão que quer vingar a morte do pai. No
magnífico Os Irmãos Karamazov, Dostoievski narra o assassinato do pai pelo seu
primogênito. Para Sêneca, o parricídio é “um crime que faz qualquer ser humano
tremer de horror”.
Felizmente, os parricídios são
raros. Nos Estados Unidos, um levantamento que reuniu dados de 1976 a 2007
mostra que compreendem menos de 1% dos homicídios em que se conhece a relação
de parentesco entre assassino e vítima. No Brasil, quatro pesquisadoras — Paula
Gomide, Ana Maria Teche, Simone Maiorki e Singra Cardoso — recolheram
reportagens da imprensa e dados da internet e encontraram 246 casos entre 2005
e 2011. Com esses dados à mão, traçaram o perfil do parricida brasileiro: é
homem, age sozinho, usa arma branca e comete o crime em casa, exatamente como
Daniel. Com uma diferença: a larguíssima maioria dos parricidas são filhos que
sofreram abusos severos — psicológicos, físicos, morais, sexuais — na infância
ou na adolescência. Respondem por algo como 90% dos casos. Os parricidas com
distúrbio mental, como Daniel, são uma minoria quase invisível, dado que
surpreende quem associa doença mental à violência. (Cerca de 84% dos portadores
de transtornos psíquicos passam a vida sem cometer nenhum ato violento.)
A OBRA - Depois do imenso
sucesso de Cabra (1984), Coutinho só fez “filmezinhos”, até redescobrir-se com
Boca do Lixo (1992). Voltou à glória com Santo Forte (1999) e, em menor escala,
com Babilônia 2000. Ao sucesso de Edifício Master (2002) seguiu-se O Fim e o
Princípio (2005). No brilhante Moscou (2009), filmou ensaios de uma peça, e
mirou sua câmera em As Canções (2011) em anônimos que cantam — sem motivo nem
causa
A presença da esquizofrenia, no
entanto, levanta uma dúvida amarga sobre o infortúnio dos Coutinho: terá sido
uma tragédia desnecessária? A psiquiatria informa que, sob tratamento e
medicação adequada, Daniel, muito provavelmente, não teria surtado a ponto de
esfaquear os pais, e tudo indica que na manhã do 2 de fevereiro de 2014 ele
tenha tido o primeiro surto psicótico de sua vida. O poeta Ferreira Gullar, ele
próprio pai de um esquizofrênico, escreveu um artigo para o jornal Folha de
S.Paulo duas semanas depois do crime e, embora amigo de Coutinho, não se furtou
a prolatar uma sentença peremptória: “Não sei por que os pais não solicitaram
atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que se o tivessem
feito aquela tragédia dificilmente teria ocorrido”. O diagnóstico de Gullar
doeu nos familiares porque, àquela altura, ninguém sabia, nem a família, se
Daniel tinha mesmo uma patologia psíquica.
Nem Pedro sabe dizer por que
Daniel nunca foi diagnosticado e tratado. “Esse era um assunto sempre doloroso
na família”, diz. A tolerância dos Coutinho pode ter sido resultado daquela
esperança ingênua de que tudo melhore sem o temporal de verdades e dores que
costuma desabar quando se aborda um problema de frente. Pode ter sido produto
daquela percepção tão peculiar que nos faz enxergar com nitidez o que se passa
com a família dos outros, mas nos cega diante do que acontece em nossa própria.
Pode ter sido vergonha ou preconceito, comuns em casas ricas, remediadas e
pobres, em razão do estigma secular da doença mental. O fato é que os pais de
Daniel tentaram três vezes a ajuda de um psiquiatra, em distintas fases de sua
vida. Mas o rapaz logo deixava de ir às consultas e, assim, nunca teve um
diagnóstico claro nem fez um tratamento continuado.
Com amigos, Coutinho tampouco
tratava do assunto. A família toda era tão discreta que parecia esconder-se de
si mesma. João Roberto do Nascimento, funcionário do edifício da Lagoa desde
2001, diz que alguns moradores nem sabiam que o famoso cineasta vivia no mesmo
prédio. A vizinha do 6º andar, Ana Beatriz da Silva Aguiar, conta que viu
Daniel só duas vezes em trinta anos: quando ele era criança e quando bateu à
sua porta para pedir ajuda, com as vísceras pulando para fora da barriga,
depois de ter matado o pai. Como cineasta, Coutinho tinha o coração escancarado
para ouvir a história de vida dos outros. Tinha um interesse voraz pelas
pessoas anônimas, geralmente pobres, das quais arrancava confissões espantosas
em seus filmes. Por isso, alguém o chamou de “psicólogo das lentes”. Como pai e
marido, era fechado feito uma ostra, nunca dividia com ninguém as intimidades
da vida familiar. Numa entrevista em 2012, disse: “Do que eu sou, eu não falo
porque nem sei nem quero”. Até amigos se surpreenderam ao descobrir, depois do
crime, que Coutinho tinha um filho com um distúrbio mental, inclusive Ferreira
Gullar. Seus filmes, apenas seus filmes, eram a forma de lidar com as próprias
dores e desesperanças, com seu fascínio e seu horror pela miudeza do cotidiano.
O CRIADOR - No destaque, o
psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939), criador do termo “esquizofrenia”,
num congresso em Weimar, em 1911: a doença de delírios e alucinações
Era uma esplêndida manhã de
domingo quando Daniel entrou no quarto dos pais com uma ou duas facas na mão.
Primeiro, dirigiu-se à mãe. Ela dormia em um colchonete no chão. De cócoras,
pegou-a por trás. Segurou-a pelo ombro com a mão esquerda. Com a direita,
cravou-lhe a primeira facada, na altura do seio esquerdo. A mãe começou a
gritar, acordando o marido deitado na cama. Ela desvencilhou- se do filho,
fugiu para a cozinha. Na fuga, caiu. O filho desferiu-lhe novos golpes.
Livrou-se dele outra vez, levantou-se. Correu para o interfone, caiu de novo.
Queria uma chave para trancar-se em algum cômodo, alcançou o banheiro,
refugiou-se ali, ensanguentada, gritando sem parar, tomada de pânico. O pai,
acordado, foi atacado pelo filho. Lutou quanto pôde. Fugiu do quarto. Tentou
pegar o interfone, foi impedido. Levou duas facadas na barriga, caiu, o corpo
inerte, debruçado sobre uma poça de sangue no chão da sala. O filho fincou uma
faca na própria barriga. Nada. Fincou de novo. Nada. Além da dor dos golpes,
não sentia nada. Subitamente, tendo sobrevivido ao próprio ataque, entendeu que
as vozes haviam lhe traído. Tinham lhe dito que conseguiria se matar com uma
facada na barriga. Desferiu duas, e não obteve o resultado prometido. Enganado
pelas vozes, com as quais mantinha “uma intensa comunicação mental”, Daniel de
Oliveira Coutinho, em surto psicótico da esquizofrenia paranoide, atribuiu o
fracasso do suicídio a uma possível “proteção demoníaca” e descobriu então,
traído e perplexo, que era mais difícil morrer do que continuar vivendo.
“Quando me olho no espelho, vejo
três cicatrizes”, diz Dorinha, que foi internada em dois hospitais. “Tem uma
grande, que deve ter pego perto de cinquenta pontos.” Coutinho, tudo indica,
morreu pouco depois de ser atacado. Na tarde de 2 de fevereiro, o perito
Francisco Eduardo Silva fez o exame cadavérico. Encontrou ferimentos no tórax,
no abdômen, na mão direita e “grande quantidade de sangue na cavidade
abdominal”. Em 26 minutos, encerrou o trabalho e concluiu que a morte de
Coutinho fora causada pela “secção quase completa” da aorta abdominal, a
principal artéria do abdômen, que provocou a hemorragia fatal.
Pedro, depois de receber o
telefonema desesperado da mãe em que pedia socorro trancada no banheiro, desceu
a Serra de Petrópolis em seu Renault Sandero. Entregou o volante à namorada,
Érika, uma ruiva doze anos mais jovem, e viajou a bordo de uma esperança vã:
que seu pai tivesse sobrevivido aos ataques, tal como sua mãe. Uma hora depois,
ao chegar ao edifício dos pais na Lagoa, viu amigos ali reunidos com as
expressões inconfundíveis do luto. Desceu do carro, olhou para a portaria no
exato momento em que os bombeiros retiravam do prédio um corpo dentro de um
saco de plástico preto. Era o cadáver de seu pai. Com uma voz pequena, Pedro
rememora: “Fiquei olhando eles colocarem o corpo no rabecão”.
Coutinho está enterrado no
Cemitério São João Batista, em Botafogo. Dorinha, com a ajuda da irmã Rita,
tenta carregar uma dor maior que ela. A trágica viuvez e a prisão do filho
destruíram seu mundo. Faz tratamento psicológico, toma remédios. Recuperou-se
bem das facadas, mas seu estado depressivo é indomável. Numa de suas raras
saídas, encontrou por acaso uma velha amiga no Shopping da Gávea. Ficou
assustada, o corpo inteiro tremia. Pensou em voltar para Pernambuco, sua terra
natal. Também pensou em mudar-se para a casa de Mauá, mas continua no
apartamento da Lagoa. Traumatizada, tem medo de visitar Daniel sozinha. Sempre
leva Rita. As visitas lhe fazem mal. Volta para casa arrasada. Pedro, que tem a
mesma fisionomia e a mesma fala atropelada do pai, enfrenta tudo com resignação
comovente. Luta em silêncio para não deixar a tragédia definir sua vida.
“Talvez uma hora eu consiga visitar Daniel”, disse ele, mais recomposto, agora
que a tragédia fez um ano. Cuida da mãe, da filha Maria Eduarda, hoje com 14
anos, e da enteada Isabelle, de 18, que o tem como pai e mora com ele.
Daniel não dá entrevistas, não
recebe amigos da família e, mesmo quando a mãe vai visitá-lo, fica impaciente
depois dos primeiros minutos de conversa, ansioso para acabar logo com aquilo.
Em dezembro, pediu ao seu advogado, João Bernardo Kappen, 33 anos e fã da obra
de Coutinho, que só tornasse a vê-lo depois do julgamento, o que pode ocorrer
até março. Daniel pode ser levado ao tribunal do júri ou ser sentenciado a
cumprir pena de internação de um a três anos num manicômio judicial. Ele se
arrepende do que fez, mas mantém a certeza de que agiu pelo bem dos pais. Na
sua percepção, as sequências de 666 ainda estão lá, cicatrizadas na cabeça, mas
agora Daniel já não acredita que seja a encarnação viva do demônio. A Kappen,
ele fez um apelo incomum na boca de um preso: pediu ao advogado que não
tentasse libertá-lo. Quer ficar no manicômio de Bangu, onde está medicado e se
sente bem.
CRÉDITOS
Reportagem: André
Petry
Design e Front-End:
Sidclei Sobral
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