Por Fabiane Leite
Estadão
09 de novembro de 2010 | 18h59
André e Geraldo em São Vicente
(SP), em foto de Ernesto Rodrigues
Conheci a história de Geraldo e
André Peixoto há seis anos, durante reportagem de balanço da reforma
psiquiátrica. André teve o primeiro surto, sinalizador da esquizofrenia, na
passagem para a idade adulta. O pai, Geraldo, horrorizado com os grandes
hospitais psiquiátricos por onde André passou, o retirou de lá, mudou a vida,
trocou a carreira de executivo pela de professor de natação para ficar ao lado
do filho. Nesses anos, tornou-se um militante do direito dos pacientes de não
serem trancafiados em hospitais e clínicas, mas acolhidos por serviços
ambulatoriais e pela comunidade.
Na primeira entrevista, Geraldo
me surpreendeu por não esconder as agruras de viver com uma pessoa com uma
doença psiquiátrica. Não dourava a pílula. Mas defendia com carinho sua
escolha, com espaço para a leveza _como a história de um amigo da família,
também portador de esquizofrenia, que insistia ser uma águia. Geraldo o acolhia
como um pássaro. Naquela época, André não estava bem, os médicos não acertavam
o remédio. Tentamos fazer uma foto de ambos, mas André não quis.
Coincidentemente, meses depois,
encontrei Geraldo durante uma “blitz” dos conselhos de psicologia e do
Ministério Público em grandes unidades psiquiátricas que ainda persistem em
diversas partes do País. Em uma das instituições, lá estavam pacientes
amarrados, sem roupa. Um deles perguntou a Geraldo se era “papai noel” (por
causa da barba branca) e pediu: “alta”!
Depois de o poeta Ferreira Gullar
chamar a lei da reforma psiquiátrica de “idiota” e de defender a internação dos
filhos, quis ouvir novamente a opinião de Geraldo. Seguiam vivendo juntos.
Sugeri novamente a foto de ambos. André estava cada vez melhor, disse o
professor. Cuidava do pai. Estava cada vez mais companheiro, relatou Geraldo. E
a foto deu certo.
Há cerca de uma semana, André,
que tinha 47 anos, morreu vítima de um infarto do miocárdio fulminante, em
casa, ao lado do pai. Compartilho com vocês, com autorização do autor, trechos
da carta que Geraldo enviou a centenas de amigos e apoiadores:
Há exatamente sete dias, nesta
mesma hora, André, meu filho querido, morreu. Tudo começou e terminou comigo.
Muitos, sequer o conheciam. Outros, o conheceram, e outros, até o acampanharam
e cuidaram dele. Estas pessoas ficaram, indelevelmente, imarcadas em nossa
memória.
André nasceu duas vezes, uma,
de Wilma, sua mãe, e a outra, de mim, quando o assumi, depois de retirá-lo de
um hospital psiquiátrico. Portanto, sinto-me fiador de todo esse querer bem,
que vocês todos têm demonstrado por ele.
Tive um privilégio, uma graça
por viver junto dele essa experiência, absolutamente fantástica, nestes vinte e
cinco anos, desde o dia em que o retirei de um hospital psiquiátrico, até
aquele momento, em que o vi, estendido no sofá da minha sala. Ele foi o meu
grande mestre, mostrou-me o caminho, o caminho que ele percorreu e que, apesar
da violência das crises e, das crises de violência, foi paradoxalmente,
delicado e extraordinário. A experiência foi “humana, demasiadamente humana”.
Fui atirado à correnteza da vida e da psicose, deixando-me levar sem
resistência, aceitando e usando-a a meu favor, sabendo, como bom nadador, que
se não o fizesse, iria , apenas, me exaurir. A correnteza, agora queridos
amigos, se diluiu, se desfez, deixando-me nadar livremente. A vida foi
maravilhosa comigo, por ter-me permitido esse encontro.
Valeu a pena, garoto! Valeu
muito a pena!
André vive! Ontem, André era o
meu objetivo – hoje, deixou de ser, pois eu o carrego comigo…
Obrigado, obrigado, obrigado…
Geraldo
Fabiane Leite é repórter da área
de saúde desde 1999, dedicada principalmente à cobertura de temas de interesse
da saúde pública e dos planos privados de saúde. Trabalhou no Jornal da Tarde,
Folha Online, Folha de São Paulo e atualmente é repórter da seção Vida do
jornal O Estado de São Paulo. Acredita que a saúde é o princípio básico para a
felicidade.
Original - https://saude.estadao.com.br/blogs/fabiane-leite/carta-de-um-pai-que-nao-internou-seu-filho/
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